2010 – Ano Internacional da Biodiversidade

por: Lucia Malla Ciência, Ecologia & meio ambiente, Faça a sua parte, Oceanos

Hoje inicia-se oficialmente o Ano Internacional da Biodiversidade. A cerimônia oficial de abertura é lá em Berlim, uma das minhas cidades prediletas – e dona de uma diversidade cultural deliciosa. Lá no Faça, o Afonso já deu o pontapé inicial sobre o evento com trechos da Convenção de Diversidade Biológica. Aqui no blog, para celebrar tema tão importante, resolvi republicar um post antigo, dos meus favoritos, que fica sempre linkado aí na coluna da direita. O título é “Biodiversidade marinha” e refletia a minha maneira de ver tal tema há 5 anos – é um exercício nostálgico interessantíssimo reler, rever conceitos, ver em que eu mudei de opinião, em que amoleci, etc. Hoje, eu reescreveria trechos, seria menos enfática em certos pontos, mais em outros, mudaria a conclusão… enfim, reformularia muito. Porque em 5 anos muitas pesquisas surgiram elucidando diversos aspectos, trazendo novas questões, mais pertinentes e até mais interessantes. Entretanto deixo aí para registro histórico o texto do jeito que foi ao ar, no dia 23 de agosto de 2005. Porque o âmago da questão é praticamente o mesmo. E continua tão atual quanto nunca. Que tal aproveitarmos para começar a refletir sobre biodiversidade?

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Biodiversidade é palavra da moda. Acho que já esteve mais na mídia num passado não muito longínquo, mas ainda hoje é um assunto para acaloradas discussões. O conceito de biodiversidade quase todos sabemos: a diversidade da vida. De bactéria a baleia azul. No conceito mais utilizado por aí, é o número de espécies diferentes existentes numa área qualquer ou num ecossistema qualquer. Entretanto, quantas espécies são necessárias para que uma área seja considerada “biodiversa”? E quais espécies são essas? Bem, em cima dessas perguntas boa parte dos ecólogos e ambientalistas do mundo inteiro quebram a cabeça diariamente, as plausíveis respostas geram reportagens em jornais e, em última instância, ações governamentais. As pessoas que tomam decisões políticas em cima de problemas ambientais prestam atenção nos números – daí a necessidade dos biólogos em “medir” a biodiversidade. Mas às vezes elas se esquecem que no caso da biodiversidade, é complicadíssimo reduzir tudo a um simples “número” porque fica sempre a impressão de que um aspecto crítico da análise ficou de fora desse cálculo mágico. (Esse é talvez o maior causador de boa parte do embate entre políticos e ambientalistas que vemos pelo mundo, a diferença de linguagem: de um lado, os números que os políticos querem, e de outro a realidade natural, muitas vezes inquantificável de forma adequada pelos biólogos.)

Semana passada, eu estava lendo na Nature mais um artigo que trazia questionamentos interessantes sobre o que é uma área “biodiversa” – os chamados “hotspots de biodiversidade“. Seria uma área com muitas espécies diferentes, como a Amazônia? Ou uma área com muitas espécies ameaçadas, como a floresta Atlântica? Ou ainda uma área com grande número de endemismo (ou seja, com espécies que só vivem ali), como o Hawai’i? O conceito atualmente utilizado por boa parte das ONGs é uma certa “mistura” dos 3: quantidade, raridade de espécies e endemismo. Como em geral reconhecem-se áreas biodiversas por causa de espécies que estão de alguma forma desequilibradas (pra mais ou pra menos, tanto faz), as estratégias de conservação terminam abordando algum dos fatores mencionados, e o que mais se adequa ao caso é o fator final “escolhido” para diálogo com os políticos fazedores das leis.

Biodiversidade marinha
Os 25 hotspots de biodiversidade terrestre no planeta, mapeados por Norman Myers em 1998. Áreas em vermelho são as mais biodiversas. Um dos hotspots mais quentes em diversidade é a ilha de Madagascar. Repare que o densamente populoso sudeste asiático está vermelhinho, vermelhinho… ou seja, choques intensos de política econômica, social e ambiental provavelmente acontecem por lá. E repare também que a Amazônia Equatorial está assinalada, mas não a Amazônia brasileira. Porque um dos fatores da equação “biodiversidade” é a densidade, e na Amazônia, as espécies estão mais diluídas por causa da imensa área. Esse é o típico problema do número mágico da biodiversidade que os ecólogos tentam achar e que fica claro com esse mapa que ainda falta pelo menos esse item da equação. Mapa tirado desse artigo publicado na Nature.

Mas, mesmo não sabendo o número exato suficiente para a tarja “área biodiversa”, todos conseguimos reconhecer por exemplo que a Amazônia é uma área mais biodiversa comparada à cidade de São Paulo. A facilidade dessa análise é simples: a gente consegue no geral, “ver” o que se passa nos 2 ecossistemas (nem que seja pela TV) e consegue fazer muito grosseiramente essa afirmação. Todos somos nesse quesito meio como São Tomé: ver para crer.

Dessa forma, muito mais dificuldade existe para o diálogo conservacionista quando a área “biodiversa” em questão está embaixo d’água. Se medir biodiversidade terrestre é difícil, medir biodiversidade marinha torna-se mais complicado ainda. Porque o mar dá essa ilusão da infinitude (inclusive de espécies), que infelizmente é apenas ilusão. Ninguém está vendo ao certo o que está lá embaixo. Não dá para ser São Tomé.

(É essa falsa infinitude que faz com que, em nome da cultura “humana”, devoremos tudo que vem do mar sem dó – os japoneses afirmam que a população de baleias não está em declínio; os chineses pensam que tubarões devem virar sopa; e outras baboseiras infundadas.)

Embora difícil, não é um trabalho impossível. Tem gente fazendo bastante. E outros pesquisando melhores maneiras de medir a biodiversidade no mar, anotando a quantidade de espécies e a raridade de cada uma, tentando agrupar esses fatos e chegar numa conclusão que gere um reflexo político eficaz na mesa de negociações por um planeta melhor. Tudo ainda em fase embrionária, mas já temos dados interessantes. Nesse sentido, o texto da Science linkado aí em cima é maravilhoso (infelizmente só acessível a assinantes), pois gerou um mapa real da biodiversidade marinha, que reproduzo aqui embaixo.


6 mapas mostrando graus de biodiversidade de: A) peixes; B ) corais; C) lesmas-do-mar; D) lagostas; E) os 4 anteriores superpostos (as áreas mais vermelhas são consequentemente as mais biodiversas); F) Maiores ameaças ao ecossistema da área – quanto mais vermelho, mais ameaçado, de acordo com um cálculo complicado que está explicado no artigo; G) Áreas de grande endemismo. Os números mostrados sao os famosos “números mágicos de endemismo”. Como todo bom gráfico, esse aí tambem é visualmente poderoso.

O Brasil é pobre em biodiversidade marinha quando comparado ao resto do mundo. Toda vez que eu falo assim, tem alguém que me olha com cara de ponto de interrogação ou de lunática. Ou cara de ofensa a nação, o que me entristece mais ainda, pois eu gosto muito do meu país. E entendo o porquê da reação das pessoas: sempre ouvimos que somos o país da biodiversidade – afinal temos a Amazônia. Biodiversidade TERRESTRE, entenda-se. E biodiversidade subaquática de ÁGUA DOCE. Mas basta olhar pra parte “E” do gráfico acima para percebermos que, embaixo da água do mar, nenhuma região do mundo se compara com o hotspot cujo centro é nas Filipinas, mas que engloba também a Indonésia, a Malásia (o chamado “triângulo de corais”) e estende-se pela Papua Nova Guiné, Austrália e parte da Melanésia e Micronésia. Num segundo lugar modestíssimo vem o Caribe. Essas 2 áreas têm as 3 características necessárias para a biodiversidade: têm um número de diferentes espécies simplesmente exorbitante, muitas delas estão ameaçadas de extinção pela intervenção humana e há alto endemismo. O Brasil, nesse quadro, tem menos de 5% dos recifes de corais do mundo.

É difícil mudar esse paradigma da “biodiversidade plena” no raciocínio brasileiro. Então, ao ouvirmos que uma espécie marinha está ameaçada, pensando naquela falsa infinitude e na falácia de que somos o “centro de biodiversidade do mundo” para tudo, pouco fazemos para melhorar o quadro. Pois assumimos de antemão que há diversidade. Não! O Brasil é pobre em número de espécies marinhas, e os poucos estudos que temos mostram isso. Deve haver um número enorme de espécies que ainda não foram nem descritas, mas mesmo assim, não se compara ao centro de biodiversidade marinha do mar de Sulu, no triângulo de corais. O Brasil é relativamente rico em endemismo, e isso sim, é uma excelente moeda de barganha com os fazedores da lei nacional. Qualquer espécie que desapareça num contexto de pouca biodiversidade faz uma enorme falta no número total. E ora, se somos brasileiros, temos que defender o que está ao nosso alcance, não é mesmo? É nesse aspecto que eu acredito que precisamos de mais iniciativas maravilhosas como o Tamar, o Jubarte e o Projeto Peixe-boi, que já existem e fazem um trabalho belíssimo. Esse estudo, por exemplo, mostra que temos 1,298 espécies marinhas de peixes, um número considerado até elevado. Mas nas Filipinas, um país muito menor, esse numero é de pelo menos 2,000. Sem falar em corais, que no Brasil são menos de 30 espécies diferentes, enquanto nas Filipinas, Indonésia e Malásia são 488 (do total de 500 conhecidas e descritas no planeta). Exemplos e mais exemplos esporádicos aparecerão, mas no geral, o centro de biodiversidade marinha é no triângulo de corais no Pacífico, e os brasileiros precisam valorizar e proteger cada vez mais as espécies que têm no mar. Porque é muito provável que numa mesa de negociação internacional, áreas com problemas tão graves como os que temos mas de maior diversidade vão vencer a batalha por recursos para conservação. São os brasileiros que devem ser os primeiros a defender a diversidade do país.


Um pequeno exemplo do que é a biodiversidade filipina pode ser verificado nessa foto tirada na Ilha Verde em junho deste ano, quando lá estivemos. Os números representam diferentes espécies que grosseiramente podemos identificar – se formos analisar com cuidado o local muitas outras aparecerão. As espécies são: 1) peixe budião Thalassoma lunare; 2) coral Tubastrea faulkneri; 3) coral Pocillopora verrucosa; 4) peixe antias Pseudanthias squamipinnis; 5) Esponja Clathria sp.; 6) peixe budião Scarus sp.; 7) coral Acropora palifera; 8) peixe-borboleta Chaetodon kleinii; 9) esponja Xestopongia sp.; 10) coral-fogo Millepora sp.; 11) coral Acropora sp.; 12) peixe ídolo mourisco Zanclus cornutus; 13) coral Tubastrea micrantha; 14) coral Anthelia sp.; 15) coral Agariciidae sp.; 16) ascídia Didemnum molle; 17) peixe donzela Chrysiptera parasema; 18) esponja Stylotella aurantium; 19) coral Xenia sp.; 20) ascídia Clavelina sp. Para mais fotos de recifes de corais biodiversos como o mostrado na foto, clique aqui.

Biodiversidade de um ecossistema é a diversidade da vida ali, em todas as suas formas – de bactérias a mamíferos. Se temos muitas tartarugas, não significa que teremos muitos ouriços. Isso deveria ser considerado no cálculo final para fazer política de conservação. O ecossistema é tudo, não apenas uma espécie. Bactérias podem gerar tanto ou maior prejuízo que uma super-população de estrelas-do-mar. Nas questões financeiras que movem o mundo, falta boa argumentação por parte dos biólogos para que o ambiente seja favorecido.


Aos que, como eu, custaram a acreditar na supremacia absoluta de diversidade dos insetos, o gráfico acima representa, dentre todas as espécies catalogadas no planeta até 1995, as que mais abundam em diversidade (terrestres e marinhos inclusos). Insetos são a fatia gorda em azul claro. Todos os animais vertebrados (de peixes a humanos) estão espremidos na fatia amarela clara. Gráfico tirado deste artigo da Nature.

Fato é que no planeta inteiro a biodiversidade marinha está em declínio acentuado. Toda vez que alguém te disser o contrário, está deslavadamente mentindo. Pode ser que algumas espécies estejam aumentando em demasia – o que por si só já é um indício de que há desequilíbrio ambiental localizado. Pode ser que nas Filipinas a diversidade ainda seja estonteante. Mas ainda é necessário que haja um esforço de preservação como em qualquer outro lugar do planeta. No geral a população humana mundial só tende a crescer – e cada vez mais, os recursos marinhos serão requisitados.

Boa parte dos problemas ambientais no mar é gerado por esse único fator, a intervenção humana. É no fundo tratando dos problemas humanos que poderemos vislumbrar soluções e melhorias pro futuro da natureza. Mas infelizmente, em muitas áreas, não dá mais pra esperar por soluções humanas. Precisa-se preservar já. Tirando esses casos urgentes de “preservação já” (que são infelizmente maioria), vejo algumas soluções no horizonte a longo-prazo: mais desenvolvimento sustentado e mais áreas de proteção delimitadas por lei e efetivamente bem cuidadas. Menos politicagem e mais austeridade política ambiental, para o benefício de todos. Criação de parques e reservas ambientais. E principalmente, mais educação de qualidade para as pessoas. Exemplos como na Ilha de Apo podem – e devem – ser repetidos. Basta educar.

Utópico, eu sei, mas é assim que eu vejo: uma utopia necessária a nossa prosperidade biológica.

Mas essa é apenas a minha opinião pessoal.

Tudo de bom sempre.



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