Dia desses li num jornal havaiano:
“Vastly improved maps and global positioning systems make it easier to figure out what the risks might be, and people are now “way more akamai about at least assessing” where they are in relation to the rift zone, he said.”
Akamai
Tenho certeza que a palavra deixa mesmo aqueles que têm vivência da língua inglesa com dúvidas. Afinal, o que é “akamai” nesse contexto? Está num jornal de circulação razoável dos EUA, um veículo de informação que requer um tratamento jornalístico claro da língua. Entretanto, o uso de um termo 100% havaiano já nos mostra que, mesmo onde a clareza deve ser lei, a realidade local fala muito alto.
Essa flexibilidade da língua entre os povos me fascina. Percebo isso principalmente com o inglês, tão difundido, que tropeça, levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima, apesar de tudo. Molda-se nos diferentes locais do planeta por onde passa – e se enriquece.
O cientifiquês
Na ciência, o inglês é a língua oficial por excelência. Desde os primórdios do meu curso de graduação, todos os professores faziam questão de frisar que um bom inglês era essencial para um bom cientista – fato que comprovei quando saí do país. Mas, paralelo ao inglês, existe uma pseudo-língua que permeia a ciência: o cientifiquês.
O cientifiquês é um dialeto formado principalmente pelos termos técnicos da ciência. Subdivide-se inúmeras vezes: existe o biologuês, o quimiquês, e dentro deles outras divisões, como o genetiquês, o bioinformatiano, etc. Em geral, o dialeto é apenas acessível ao cientista especialista, embora sua construção gramatical seja a mesma do inglês. Veja esse exemplo de fisiologuês, subdialeto do biologuês:
“Here we report that despite a normal plasma 3,5,3′-triiodothyronine (T3) concentration, cold-exposed mice with targeted disruption of the Dio2 gene (Dio2(-/-)) become hypothermic due to impaired BAT thermogenesis and survive by compensatory shivering with consequent acute weight loss.” (Tirei daqui.)
É claro, aos cientistas da área, esse parágrafo está cristalino como água. Mas se você perguntar a um cientista de outra área, ele provavelmente terá dificulades em entender o significado geral do que foi dito. Ou seja, o cientifiquês é tão hermético que gera compartimentalização mesmo dentro da ciência.
Como traduzir o cientifiquês?
O público em geral não lida ou não está acostumado com o linguajar. Resta a ele confiar nos meios de comunicação e nos seus jornalistas científicos para “traduzir” aquela mensagem do cientifiquês geral para a língua corrente (escrita ou falada). Este não é um processo tão simples, pelo contrário: é, em geral, frustrante. Basta abrir qualquer caderno de ciências dos grandes jornais em circulação no país para perceber essa realidade. Cientistas frustram-se porque suas idéias não foram compreendidas adequadamente pelos jornalistas. E jornalistas frustram-se porque não conseguem simplificar uma idéia complexa sem banalizá-la ou reduzi-la a um chavão (muitas vezes errôneo).
No final, quem sai perdendo é o leitor. Esse problema em geral deve-se a uma falha na comunicação. O cientista fala um dos subdialetos do cientifiquês, e o jornalista só aprendeu a lidar com o cientifiquês, e não detecta que existe um subdialeto no que o cientista fala. Fica realmente como se estivessem falando línguas diferentes. O que sai dessa salada da comunicação é o que temos no momento como divulgação da ciência na grande mídia.
Já existem iniciativas interessantes que tentam “traduzir” os subdialetos do cientifiquês a pessoas de outras áreas – vejo isso muito, por exemplo, nos blogs de ciência, com seu potencial de discutir assuntos até então restritos à academia com um leque maior de pessoas, leigas ou não. A discussão abrange a todos nesse caso. Em geral, são nessas caixas de comentários que vemos a idéia complexa ser digerida e repassada da maneira mais simples, com um linguajar adequado ao público geral. Ou seja, a transição perfeita do subdialeto do cientifiquês para a linguagem corrente, simples e adequada, feita da forma mais orgânica e colaborativa possível.
Fazendo a nossa parte
Entretanto, gostaria de frisar que, em minha opinião, cabe também ao cientista tentar ser o mais claro possível, sem perder a essência do seu trabalho. Adaptar seu linguajar ao seu público. Não é tarefa só do jornalista a tradução da idéia complexa em dialetos do dialeto. Quando o cientista a passa de maneira clara, a informação chega muito mais facilmente ao público geral.
A existência do cientifiquês, em minha opinião, é necessária, para que a velocidade de comunicação entre dois especialistas seja mais fluida e permita maior assimilação de conceitos mais profundos entre eles. Mas isso não significa que ela deva se estender a todos. É necessário que o cientista exerça bom-senso e não faça uso das mesmas expressões complicadas. Principalmente, não assuma que a pessoa o entendeu perfeitamente. O cientista precisa se desligar do cientifiquês hardcore em certos momentos, principalmente na divulgação da ciência.
Parece que estou falando o óbvio, né? Mas canso de encontrar colegas que discorrem sobre seu tema fervorosamente como se o interlocutor fosse quase obrigado a entender tudo o que ele está dizendo. E vejo principalmente o interlocutor tímido, apenas balançando a cabeça, com cara de ponto de interrogação; ou seja, nada entendendo.
Simplificar sem medo
Para reverter esse quadro, talvez a solução esteja na arte de falar simples, arte que poucos dominam na ciência. Afinal, o cientista se acostuma a só conversar com seus pares, e infelizmente perde o tato com o grande público. Isola-se em seu dialeto que apenas meia dúzia entendem.
Ser claro, conciso e direto ao seu objetivo, sem rodopios ou palavras difíceis ou especializadas deveria ser um objetivo preponderante nas conversas fora de seu círculo dialético. Muitas vezes o interlocutor não quer saber o detalhe do detalhe do seu trabalho: ele quer saber o seu objetivo geral. E é esse objetivo, seus resultados e afins que irão talvez chegar na grande imprensa, traduzidos do cientifiquês para o linguajar corrente por um jornalista ou divulgador.
São os objetivos e resultados que precisam estar claros como água. Para que o processo educativo e de conhecimento seja pleno para ambos os lados, cientistas e não-cientistas, sem mal-entendidos que geram frustrações. Para que ao lermos um texto especializado, o cientifiquês se flexibilize. E seja incorporado à língua vigente tanto como o havaiano ao inglês: em ritmo de aloha.
Tudo de akamai sempre que possível.
- Esse texto faz parte das discussões no Roda de Ciência nesse mês de dezembro, cujo tema é “a arte de falar simples”.
- Akamai = vocábulo havaiano que funciona como substantivo, adjetivo ou advérbio: inteligente, esperto, ou inteligentemente, espertamente.