Arraias e a morte de Steve Irwin

por: Lucia Malla Animais, Austrália, Oceanos

A essa altura do campeonato, já estão todos cientes da infortunada morte de Steve Irwin, conhecido como “crocodile hunter”. Uma pessoa apaixonada por animais selvagens, incluindo arraias. E que, apesar dos modos ortodoxos, era um bom conservacionista, disposto a compartilhar uma paixão ímpar. Steve Irwin queria mostrar a todos o quão encantadores os bichos selvagens, mesmo os considerados mais “agressivos”, podem ser.

Não me elongarei demais sobre Steve, vítima de um acidente raro – ou seja, teve muito azar durante o fato. Fiquei realmente triste ao ler ontem a notícia no Sidney Herald – foi o primeiro jornal a publicar. Tudo que posso dizer é que envio meus pêsames a familia Irwin.

Arraias e a morte de Steve Irwin

Aguilhão no coração de Steve Irwin

O mais bizarro e merecedor de esclarecimento em minha opinião é a causa de sua morte: ferido no coração pelo veneno injetado pelo aguilhão de uma arraia.

Arraias - Stingray City - Ilhas Cayman
Arraias no seu ambiente. A foto foi tirada no “Stingray City”, nas ilhas Cayman.

A arraia (ou stingray, em inglês) sem dúvida pode machucar uma pessoa, isso é notório. Ela possui um ferrão cheio de dentinhos afiados e com veneno (o chamado “aguilhão”) que carrega no dorso, para se livrar de predadores indesejados. Mas os conhecedores do assunto entrevistados desde ontem são todos unânimes em afirmar que casos de morte por arraia são pra lá de raros. Aliás, a maioria dos profissionais sequer presenciou na prática um caso letal. (Há artigos diversos comentando a potencialidade de morte, mas sempre enfatiza-se a natureza rara do acontecimento.) Um dos poucos relatos de fatalidades na literatura médica especializada que encontrei, por exemplo, é de 1958.

A arraia em geral é dócil. Ao ser atacada, pode liberar seu aguilhão, que é poderoso e contém veneno. Mas vale lembrar que a arraia não sai soltando seu ferrão à toa: precisa estar acuada para querer se livrar da ameaça, ou seja, sentir que a sua vida (da arraia) está em perigo. Além disso, a probabilidade de que o ferrão entre numa área mais “inócua” do corpo é grande, porque ele é lançado unidirecionalmente, não tem flexibilidade de mira. Quando você segura uma arraia, o aguilhão em geral está voltado pra baixo ou pra frente, nunca pra trás, na sua direção.

Acidentes registrados

A maior parte dos acidentes ocorre na região do pé: a pessoa pisa na arraia sem querer, e ela ferroa – porque um comportamento típico da arraia é se enterrar na areia e ficar apenas com os olhos de fora, o que pode pegar desprevenido uma pessoa mais distraída. Mas nadando livremente, é praticamente impossível que o aguilhão seja disparado contra o seu coração tão certeiramente, por sua unidirecionalidade. A arraia precisaria estar de costas para a pessoa, e a pessoa imediatamente atrás, ou a pessoa estar nadando sobre a arraia.

A arraia também dá alguns sinais discretos de que vai lançar seu aguilhão: ela arrebita a estrutura de seu organismo onde o ferrão está depositado antes de efetivamente injetá-lo no predador que a perturba.

Arraia na Caverna da Sapata - Fernando de Noronha - Brasil
Uma demonstração de como a arraia se enterra na areia, comportamento natural responsável por muitos acidentes em humanos (essa arraia estava na Caverna da Sapata, em Fernando de Noronha).
Arraia curiosa
Uma arraia curiosa.

A arraia de Steve Irwin

Dadas essas informações, custo a acreditar que a arraia causadora desse estrago em Steve não estava estressada pelo excesso de manuseio. Veja bem, é uma especulação minha apenas (os jornais que li deram informações pouco detalhadas de como o acidente aconteceu, apenas dizendo que ele nadava sobre o bicho no momento do ataque). Mas pense comigo: ele estava filmando um documentário sobre predadores marinhos. E todos sabemos que seus métodos de mostrar a vida selvagem envolviam manuseio próximo. Se ele fazia isso com crocodilos, que são mais perigosos, por que não faria com uma arraia, que é considerada muito mais dócil?

(Acreditem: conheço bem a adrenalina do momento em que você encontra um animal desses, principalmente para um profissional apaixonado pela vida selvagem. Requer muito auto-controle para que a pessoa não ultrapasse os limites do bicho.)

Provavelmente a arraia não gostou do manuseio exagerado e apenas se defendeu, muito mais por medo de Steve do que por agressividade. O azar de tudo é que ela devia estar numa posição muito particular, para que o aguilhão entrasse direto no coração dele e o matasse imediatamente por perfuração, como aconteceu. o veneno nesse caso é praticamente indiferente. Esse foi o maior infortúnio de Steve, infelizmente. E claro, agora é totalmente inútil ficar discutindo se ele estava certo ou errado.

Arraias são dóceis

Antes que se cogite uma verdadeira caça às arraias (como infelizmente ocorre com os seus parentes próximos, os tubarões, a cada acidente), quero lembrá-los de que a letalidade das arraias advém apenas de sua necessidade de defesa contra potenciais predadores. São diferente dos tubarões, que atacam animais maiores (e erroneamente atacam humanos às vezes).

Porque as arraias se alimentam apenas de pequenos peixes e invertebrados, como camarões, ostras e caranguejos. Jamais atacariam um animal grande como um humano para comê-lo, apenas (repito) para se defender numa situação limite. A tendência comportamental delas inclusive é se afastar das pessoas quando incomodada. Além disso, muito pouco se sabe sobre a biologia das arraias. Portanto exterminá-las antes mesmo de conhecê-las seria de uma ignorância sem par.

Olho de uma arraia
Detalhe do olho de uma arraia.
Arraias secas no mercado de rua em Busan - Coréia do Sul
Que “novidade”: os asiáticos adoram comer arraia seca, e são vendidas aos montes nos mercados de rua daqui. O da foto, foi em Busan, Coréia do Sul.

O que a morte de Steve Irwin mostra é o de sempre: acidentes acontecem. Mesmo para as pessoas mais bem preparadas e acostumadas a lidar com a vida selvagem. E a forma mais sensata de sempre se relacionar com um animal é simples: respeito a seu comportamento natural. Evitar o estresse desnecessário de qualquer bicho. Porque mesmo dóceis, quando acuados, eles vão se defender, é seu instinto básico de sobrevivência.

Tudo de bom às arraias.

R.I.P., Steve Irwin.

Para viajar mais sobre arraias

  • No Grand Cayman há um ponto de mergulho popular chamado “Stingray city”, onde as pessoas alimentam as arraias manualmente. Milhares de turistas visitam anualmente esse local. Contudo, relatos de acidentes com as arraias onde elas estão aos montes como no Cayman são raríssimos.
  • Nos EUA são registrados anualmente cerca de 5,000 casos de acidentes com arraias. A maioria, sem grandes sequelas; os mais graves em geral terminam em amputação do membro ferido. Morte? Nem consta no relato. A morte de Steve foi a 17a registrada no mundo até hoje. E a 4a acontecida com um aguilhão direto no coração.
  • Apenas 4 famílias de arraias são dotadas de aguilhão. Entre elas, as do gênero Dasyatis são as mais conhecidas e estudadas. A demais famílias de arraias (que incluem a jamanta e a arraia-chita, entre outros) possuem mecanismos de defesa pessoal diferentes, e são mais dóceis ainda aos humanos.
  • Mais fotos de arraias você encontra aqui.


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