Perguntas da vida

por: Lucia Malla Biomédicas, Ciência, Educação, Mallices, Minas Gerais

Dia 03 de setembro, ontem, foi dia do Biólogo. Eu sou bióloga. Eu esqueci da data – a Alline que me lembrou. Vergonhoso esse esquecimento. Mas talvez reflita um pouco minha reticência com tantas datas comemorativas. Elas existem como pausas de um ano para reflexões, e olhando sob essa perspectiva, há muita coisa a refletir no caminho que trilhei da profissão que escolhi. Muita coisa ainda a perguntar nesta vida de bióloga.

Sobre a Biologia

De maneira bem simplificada, biologia é o estudo da vida. Qualquer vida. Parece super-simples de entender, mas basta você rebater com a pergunta: “E o que é vida?” para a confusão começar. Quando eu estava na escola primária, aprendi que ser vivo é tudo que “nasce, cresce, reproduz, envelhece e morre”. Mais tarde, uma resposta mais elaborada e não menos incompleta apareceu. Um ser vivo passou a ser aquele que:

  • É composto por uma célula, pelo menos;
  • É formado por compostos orgânicos como proteínas, ácidos nucléicos, carboidratos e lipídios;
  • Mantém-se em equilíbrio homeostático por um período;
  • Possui um metabolismo de consumo, transformação e gasto de energia e matéria, além de uma forma de excretar o que é desnecessário à sobrevivência;
  • Sua espécie evoluirá.

Parênteses

Repare que nessa definição, os vírus e príons, meros agentes infectantes que não têm uma célula delimitada, poderiam ser descartados do mundo “vivo”. É claro que não o são, portanto, a definição teve que crescer um pouquinho para abrigar esses parasitas moleculares. Nada que bons virologistas não dêem jeito. E a definição de vida hoje inclui tudo, de príon a nós, humanos. Alguns ainda mais simplistas dizem que vida é tudo aquilo que está “após a concepção e antes da morte”. Essa visão não me satisfaz, porque nesse caso, uma estrela também pode ser vida, né não?

Organização da vida

Para chegar nessa compilação do que é um ser vivo, tenha certeza, muitas perguntas foram elaboradas, bem ou mal, por diversos cientistas. Muitas reuniões, congressos, discussões. Muitas questões. A vida não é tão simples assim que caiba numa definição só tão fácil.

Num curso de biologia normal, aprendemos que o estudo da vida pode ser feito em vários níveis: desde moléculas de uma única célula até populações inteiras de animais e plantas. Podemos estudar suas funções. Estudar as interações que os indivíduos fazem uns com os outros, espécies diferentes ou não. Podemos estudar suas características básicas, anatômicas. E mais um sem-fim de campos, para todos os gostos e sabores. Mas aprendemos algo mais valioso ainda num curso de ciência, que não está bem delineado no currículo. Não é uma disciplina que vale A, B ou C. Eu explico com calma.

Bióloga desde criança

Desde criança eu adoro ciências.

Com meus amiguinhos de rua na infância, tínhamos um “cemitério” no jardim do prédio, onde colocávamos todos os insetos que achávamos mortos, enterrávamos, e depois retirávamos de lá para “examinar”. O que teria acontecido com o bicho depois de uma semana enterrado? Exumação de insetos – poderia eu ter sido uma CSI?

Além disso, eu morava na beira de uma praia. Todo mês de dezembro, tinham botos (pelo menos a gente achava que era boto…) que passavam por lá. Peixes, ondas e areia fizeram parte fundamental da minha infância. Lembro-me claramente de uma vez que uma baleia encalhou na praia. Uma multidão de gente começou a esfaquear e cortar pedaços da carne para consumir em casa – eram tempos menos ecológicos, definitivamente. Mas o que eu me perguntava aos 4 anos, vendo aquela cena, era: “por que será que ela encalhou aqui?” Ah, a curiosidade infantil…

Na escola

Mas aí chegou a sexta série. E com ela o estudo da categorização das espécies do mundo animal. E foi nessa série que eu me apaixonei pela vida. “Como surgiram os jacarés?” Lembro-me de perguntar isso inúmeras vezes ao meu professor de ciências, que sempre me enrolava com uma resposta light com receio de me confundir mais ainda. Afinal, eu era uma criança.

Os anos foram passando. Já no segundo grau, num daqueles testes vocacionais típicos de adolescência baratinada, meu resultado deu então de cabo a rabo, profissões da área biológica. E eu já estava mais que certa da carreira a seguir, muito antes do teste. Na verdade, lembro-me de uns dias antes ter procurado – em vão – em revistas algo que dissesse como responder a testes vocacionais de forma a darem o resultado que a gente quer. Eu não queria ver estampado no meu teste vocacional algo como “historiadora” ou “artista plástica” de jeito nenhum. Porque na minha ingênua cabeça infantil, achava que o resultado do teste vocacional era definitivo. Ele ia portanto fazer pressão na minha cabeça. Era ele que mandava em mim, e não eu nele – quanta bobeira. Mas acho que respondi “direitinho”, porque lá estava no meu resultado: “bióloga” ou “oceanógrafa”. Ufa.

O vestibular para Biologia

Estudei muito pro vestibular de Biologia. Muitas pessoas me perguntavam por que eu, que era “tão esforçada, tinha tanto potencial” (quanta afirmação vazia…) não fazia logo vestibular para Medicina. Na época, eu dizia contudo que não gostava de lidar com gente doente, o que em parte é verdade dado meu coração de manteiga. Mas no fundinho lá dentro, eu sabia que a Medicina não ia satisfazer minha curiosidade intrínseca por todos os aspectos da vida, não só a humana. Fiz então prova para Biologia na Unicamp, na UFRJ e em Viçosa (MG). Meu sonho era a Unicamp e seu curso com ênfase na área molecular – sim, naquela época eu já tinha me caído de amores pelo DNA.

A tristeza se abateu em mim quando saiu o resultado e eu não havia passado. Chorei muito, muito, por dias e dias. Mas as outras provas vieram, e eu as fiz (meio sem esperanças, mas fiz). Passei nas 2. Podia escolher entre o Rio e Minas – e fiquei com Minas, pela tranquilidade da cidade, pelo novo ambiente, pela aventura do desconhecido, desde sempre na veia. Pelas perguntas que eu fazia a mim mesma em nome do conhecimento de uma nova vida.

Na faculdade de Biologia

Centro de Vivências e Bernardão - Universidade Federal de Viçosa (UFV) - Perguntas da vida de bióloga
O campus que me abrigou por 5 anos: Universidade Federal de Viçosa. O início de uma caminhada pelas perguntas da vida.

Eu tinha 17 anos, e fui morar sozinha longe de casa numa cidade que eu não conhecia nem nunca tinha ido antes. Por sorte, no primeiro dia de aula, apareceu um amigo meu de longa data na mesma turma, o Rafaelo Galvão, o que me deu um pouco mais de segurança para enfrentar a nova empreitada da vida. (Ele havia estudado comigo desde a primeira série primária, e continuamos estudando juntos na faculdade, até a colação de grau. Hoje, ironicamente, ele também é um biólogo molecular como eu – só que ele estuda plantas.) Tudo era novo, um grande desafio.

Mas foi quando eu comecei a visitar os laboratórios da universidade, ter aulas mais profundas de todas as amplitudes que o estudo da vida engloba, ter contato com professores que mais indagavam que respondiam, que percebi que eu tinha realmente nascido para ter uma vida de bióloga. Não cabia em mim outra profissão: perguntador profissional.

Aprender a perguntar

O aprendizado dos mecanismos que definem o que é a VIDA é simplesmente encantador. Mas mais encantadora ainda é a oportunidade que temos de aprender a perguntar. Tudo, para todos. A atividade exclusivamente humana chamada ciência é moldada a partir de perguntas. Einstein (?) dizia que “as perguntas mais difíceis de responder são as mais simples” – e é verdade. “O que é vida?” é um bom exemplo. E tantas outras. Perguntar só se aprende perguntando. Questionar, questionar. Exercer um ceticismo contínuo, buscar as informações da forma mais clara possível, sem vergonha mesmo, sem medo de errar. Investigar as referências, analisar com lógica. Perguntar, perguntar.

Eu sempre me questionei muito, sobre tudo e mais um pouco. E perguntava aos meus pais, amigos, professores, que tinham que aguentar todos os meus “por quês” com uma paciência de anjo. Mas foi na faculdade de biologia que aprendi que a pergunta enriquecedora é aquela que te possibilita outro questionamento na resposta. Um aprendizado que carreguei comigo para todos os aspectos da minha vivência.

Vida de bióloga

Hoje, após um diploma debaixo do braço, uma pós-graduação difícil e muitas perguntas intrigantes, eu percebo que a vida de bióloga é uma árdua profissão de 24h/dia, 7 dias/semana, 365 dias/ano. A vida, nosso objeto de estudo, acontece a todo momento, naturalmente, e a cada um desses momentos, ela imprime uma nova perspectiva, um novo fato é adicionado, uma nova experiência é compartilhada, um novo aspecto surge. E uma nova pergunta emerge. E eis que para mim a carreira e a vida de bióloga envolve esse contínuo buscar da próxima pergunta que nos deixará embasbacados com a maravilha que é viver.

Tudo de bom sempre para nós, biólogos, eternos perguntadores da vida natural.



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