Um planeta de vírus (A planet of viruses)

por: Lucia Malla Biomédicas, Ciência, Livros, Molléculas da vida

Desde o início de 2020, um novo vírus mudou o rumo de nossa sociedade. O coronavírus SARS-CoV-2, que causa a doença COVID-19, fez emergir incerteza e fragilidade humanas sem precedentes na história recente global. Como cientista, assim que o tsunami de notícias sobre o novo coronavírus começou a nos inundar, minha primeira reação foi tentar aprender mais sobre vírus. É aí que entra o livro fenomenal do jornalista Carl Zimmer, A Planet of Viruses (ainda sem tradução em português).

A Planet of Viruses - Carl Zimmer - Um planeta de vírus

Meu conhecimento de virologia, confesso, não é dos mais sólidos. Mesmo tendo feito aula de microbiologia na faculdade. Mesmo trabalhando ao lado de um grupo renomado em pesquisas virais, constantemente assistindo palestras sobre Ebola, Zika e afins. E mesmo tendo hospedado o Átila em casa em 2014 – e discutido sobre epidemias e vírus emergentes com ele na ocasião. Mesmo assim, ainda me sentia virologicamente “crua”, principalmente sobre o contexto em que SARS-CoV-2 aparece. Precisava aprender mais.

Para estancar esse déficit de conhecimento, um livro-texto de virologia me ajudou a entender um pouco mais da biologia “dura” dos vírus. Mas o contexto histórico das doenças virais… Esse foi o “A planet of viruses” que me ensinou.

Sobre o autor

Carl Zimmer é, em minha opinião, um dos melhores jornalistas científicos da atualidade. Acompanho-o desde que tinha um finado blog no ScienceBlogs gringo, nos idos de 2006. Hoje escritor e colunista de diversos jornais, incluindo o NYTimes, Zimmer consegue traduzir de maneira muito clara ao público leigo conceitos e temas complexos da ciência, nuances que vão além do que a maioria dos headlines apontam. E, neste livro, sua maestria das palavras está a todo vapor.

À frente do seu tempo

A planet of viruses” foi publicado em 2015, portanto antes da pandemia do SARS-CoV-2. Mas, além de servir como excelente introdução ao histórico dos vírus, tem um capítulo inteiro dedicado aos potenciais outbreaks do futuro – e nele estão lá os coronavírus, como mais prováveis de pularem a barreira interespecífica de um morcego ou outro mamífero para o humano. Afinal, não precisava de bola de cristal para prever a pandemia que vivemos hoje. Bastava apenas prestar atenção no que virologistas e epidemiologistas vinham alertando através de suas pesquisas nos últimos 20 anos.

Mas mais que este exercício de futurologia, Carl Zimmer consegue sensivelmente explicar como os vírus são, na realidade, aliados da nossa espécie. O livro é subdividido em três partes, além da introdução e do epílogo.

A Planet of Viruses

Ainda na introdução, vale citar a etimologia de “vírus”, porque ela traz exatamente a dicotomia que permeia por todo o livro. Zimmer escreve:

“The very word virus began as a contradiction. We inherited the word from the Roman Empire, where it meant, at once, the venom of a snake or the semen of a man. Creation and destruction in one word.”

“A própria palavra vírus apareceu como uma contradição. Nós herdamos a palavra do Império Romano, onde ela significava, ao mesmo tempo, o veneno de uma cobra ou o sêmen de um homem. Criação e destruição em uma só palavra.”

Na saúde e na doença

Junto com a introdução, a parte “Old Companions” trata da descoberta dos vírus, ocorrida por sua relação patológica com a nossa espécie. Comenta-se sobre rinovírus, influenza e papilomavírus, três tipos de vírus. Apesar destes três tipos de vírus estarem associados à doenças, ainda assim, Zimmer traz uma perspectiva do quanto estes vírus também contribuíram para o avanço do próprio conhecimento virológico e molecular que temos. Afinal, sempre há uma perspectiva para balancear, criação e destruição na mesma partícula.

Mais: os vírus infectam e controlam populações de bactérias, algumas delas que poderiam nos trazer doenças. Zimmer adora nos trazer esta perspectiva, que consiste em constantemente repelir a visão simplória de que “vírus = doença”.

Vírus marinhos

Particularmente, amei o capítulo sobre os vírus marinhos. Primeiro, porque explora a imensa diversidade que é a sopa do oceano, a comunidade microbiológica que existe há bilhões de anos nesse planeta líquido. (“And if you line up all the viruses in the ocean end to end, they would stretch out 43 million light-years.”)

Segundo, porque raramente penso nestes microorganismos quando estou no mar. Aliás, acho que poucos pensam também. Portanto, foi uma surpresa deliciosa aprender mais sobre este ambiente tão amado. Zimmer nunca perde o foco de que os vírus estão aqui há muito mais tempo que nós – portanto, precisamos pensar neles e conhecê-los.

Terceiro, porque cita Lita Proctor, uma microbiologista americana fenomenal, apaixonada por micróbios em geral, e a primeira pessoa a estudar bacteriófagos (os vírus das bactérias) no mar. E que tive o imenso prazer de ver em uma palestra sensacional aqui na Universidade do Havaí em janeiro deste ano.

(Dá pra ver a palestra completa de Lita Proctor neste link, e recomendo muito, apesar de longa. Bônus: vocês verão como as palestras mais ilustres no Havaí são “introduzidas” com um canto tradicional.)

O futuro presente viral

Mas é na terceira parte do livro “The viral future”, que Carl Zimmer brilha. Embora o foco seja, de novo, em vírus que causaram problemas letais para a humanidade até então (lembre-se, o livro é de 2015): ebola, vírus do Nilo e HIV. Só que Zimmer usa estes exemplos patológicos para discutir não só futuras epidemias, mas os avanços do nosso conhecimento sobre virologia, sobre vacinas e principalmente sobre gerenciamento político e científico de vírus e suas consequências sociais.

O exercício de futurologia, entretanto, é assustador.

“The next plague may start when yet another virus in some wild animal jumps into our species – a virus we might not yet even know about. (…) But because we live in a planet of viruses, that task [surveying viruses] is enormous. (…) we can’t say which, if any, of these newly discovered viruses will create a great epidemic. (…) we need to stay vigilant, so that we can block them before they get a chance to make the great leap into our species.”

“A próxima praga pode começar quando um outro vírus de algum animal selvagem pular para a nossa espécie – um vírus que podemos nem conhecer ainda. (…) Mas porque nós vivemos num planeta de vírus, esta tarefa [monitorar vírus] é enorme. (…) não podemos dizer se alguns destes novos vírus descobertos vão criar uma grande epidemia. (…) precisamos permanecer vigilantes, para bloquear vírus novos antes que eles tenham a chance de fazer o grande pulo para a nossa espécie.”

Como a história atual nos mostra, por n razões que não convém serem discutidas neste post, não fomos suficientemente vigilantes. E estamos aí, a maioria em quarentena (#ficaemcasa), por conta de um coronavírus novo, que apareceu há pouco e transformou a humanidade. Carl Zimmer, com “A planet of viruses”, foi mais um dos que tentou nos avisar, com uma visão abrangente e equilibrada sobre o mundo viral do futuro. Que virou presente.

Tudo de bom sempre.

P.S.

  • A contribuição profissional à discussão científica sobre o SARS-CoV-2 que eu e meus colegas do selênio escrevemos você pode ler aqui.


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