Rodando na ciência: Viçosa

por: Lucia Malla Brasil, Ciência, Cotidiano, Memes, listas & blogagens coletivas, Minas Gerais
Rodando na Ciência - Viçosa

Prédio do lab em Viçosa.

Lembro até hoje do dia em que fui levada a conversar com aquele que seria meu primeiro orientador na vida, apelidado de “Nivaldo”. Ele, um professor pacientérrimo; eu, uma animada iniciante na arte laboratorial. Sua missão era das mais complicadas: ensinar o básico para mim. De etiqueta laboratorial a protocolos, eu era uma página em branco.

Não foi fácil, e como todo bom estudante calouro que se preza, comecei de baixo: ajudando a lavar vidraria (primeira grande lição, para valorizar cada tubo de ensaio que você suja). Mas logo veio a verdadeira missão impossível: fui convocada a produzir uma enzima que na época todo o lab usava em quantidades abusivas – eu nem sabia pipetar ainda. Ninguém queria produzir a tal enzima, porque demandava muito tempo para fazê-lo. O processo produtivo era de 4 dias bem puxados de trabalho, e encarei o desafio como toda iniciante a cientista o faz: super-feliz. Estabeleceu-se então minha rotina por quase 1 ano – excelente rotina, por sinal, pois aprendi uma miríade de técnicas que muitos dos meus colegas da época mal sabiam o que eram.

Eram 6 laboratórios naquele andar, todos trabalhando com melhoramento genético de soja, em diferentes questões. No nosso lab, o grande projeto era melhorar o gosto ruim da soja. Em geral, produtos de soja (leite, carne, etc.) não eram bem aceitos no mercado por causa do seu gosto “diferente”, muitas vezes de difícil digestão. Esse “gosto ruim” é fruto da existência de 3 enzimas chamadas lipoxigenases 1, 2 e 3 que existem no grão de soja. As lipoxigenases catalisam uma reação metabólica do grão que leva a produção de uma molécula que gera esse gosto ruim. Sem as lipoxigenases, a soja ficava mais agradável ao consumo humano. Tinha o pessoal que ficava na casa de vegetação, fazendo cruzamento de soja. Tinha os que analisavam o teor de lipoxigenase. Tinha mais uma galera que tentava entender por técnicas de biologia molecular como era o padrão genético dessas sojas diferentes. Eram muitas pessoas envolvidas no projeto. A maior parte da pesquisa era financiada pela Nestlé.

Mas eu era estudante, tinha muitas aulas ainda, e embora estivesse adorando o “mundo da soja”, não tinha todo tempo do mundo para me dedicar ao laboratório. Segunda grande lição: laboratório é um trabalho de equipe. Se eu não podia estar lá o dia todo, alguém faria pedaços por mim sob minha responsabilidade – o importante era o resultado final. Das primeiras vezes, meu próprio orientador ficava praticamente o tempo todo ao meu lado, me ensinando como fazer, os truques e principalmente explicando para quê servia cada reagente, cada etapa do processo. Esses períodos de dedicação direta dele foram fundamentais para formar a minha visão futura da ciência. E acabei interagindo com todos do lab.

A produção da enzima começava com o crescimento das bactérias da cepa recombinante em meio líquido, a 37 graus – eram as Escherichia coli, tão comuns em nosso trato digestivo. A bactéria isolada saía do freezer -80 direto para o meu vidrinho de 5ml. Ficavam lá se batendo no shaker por uma noite. No dia seguinte, o conteúdo do vidrinho era despejado num frasco com 1 litro de meio limpo. 3 horas depois, eu adicionava àquele caldo um indutor de expressão, que era uma substância que fazia a bactéria começar a produzir loucamente a enzima que eu queria. E ela ficava mais uma noite crescendo, dessa vez em quantidades abissais.

O terceiro dia era o mais puxado – e o mais legal. De posse de um frasco que era basicamente um caldo de bactéria com enzima, começava o verdadeiro processo de purificação. Dá choque térmico na bactéria, centrifuga, passa no filtro, passa em coluna de afinidade… uma trabalheira que demandava que eu ficasse o dia inteiro no lab, por conta disso, tomando conta de cada gotinha que descia da coluna. Coletava as gotas e separava em tubos, para análise da qualidade no dia seguinte. Muita paciência envolvida em ver gotas caindo lentamente, como estalactites se formando.

A pureza era a principal meta. Queríamos que no final, apenas a enzima ficasse no tubo. E ela precisava estar funcionando também, porque se tivesse se denaturado durante o processo, de nada adiantaria o esforço, ninguém no lab poderia usá-la em seus experimentos. Para verificar a pureza, era preciso uma análise eletroforética – que se faz correndo o famoso “gel”, um bloco de substância gelatinosa (geralmente poliacrilamida ou agarose) com buracos no topo (os “pocinhos”) para você colocar sua amostra. Se no final no gel aparecesse apenas uma linha bem no meio, era sinal de que a enzima estava pura. Se houvesse qualquer sinal de borrão, a enzima estava degradada e sua função comprometida.

(Parênteses: essa é a base grosseira do processo de produção industrial da insulina que todos os diabéticos usam, por exemplo. E de mais um catatau de outras proteínas usadas em tratamentos médicos. O processo já rendeu alguns prêmios Nobel de Química. Fim do parênteses.)

Fiquei quase 1 ano nessa rotina. No final, já havia otimizado inúmeros passos. Quando meu orientador percebeu que eu já havia aprendido o suficiente, me passou para outro projeto. Desse, tudo que me lembro é que precisava ficar acordada por 24h seguidas, recolhendo amostras de folhas de soja, em intervalos de 3h na “câmara de nevoeiro”, uma câmara úmida onde ao entrar tudo que eu via era uma fumaceira danada num ar irrespirável de tanta umidade. Eu trabalhava um dia literalmente inteiro e passava 2 recuperando do cansaço gerado pelo sono saltitante, atrapalhando meu rendimento escolar. Não deu muito certo, e logo o projeto teve que ser repensado, até o fim da minha graduação.

Paralelo a todo esse trabalho, fiz vários amigos, de quem tenho saudades, principalmente das nossas conversas. Tinha a sensação de que eles me consideravam meio como a “mascote” do lab, e a maioria tinha muita paciência com meus erros e acertos de principiante. O laboratório ficava num prédio só de pesquisa, e no andar que eu trabalhava, circulavam umas 50 pessoas entre professores, técnicos e estudantes todos os dias. Os cafezinhos eram intermináveis, regados à tofu (proveniente dos testes com a soja e que eu particularmente não gosto). As festas de fim de ano memoráveis, e em uma delas, uma professora caiu em cima de uma árvore de Natal de mais de 2m cheia de penduricalhos. Natal em caquinhos foi o lema da virada.

O tempo passou, e eu me formei. Saí dali para uma área de atuação completamente diferente, mas os conhecimentos adquiridos no mundo da soja me enriqueceram e trouxeram um diferencial perante os demais – depois de um tempo, percebi que o que eu fazia na época era bastante diferenciado para uma simples estudante de graduação. Estão até hoje guardados com muito carinho em minha mente e de vez em quando bate aquela saudade gostosa, de um período de inocência e pureza científica – literalmente.

Tudo de bom sempre.

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Os posts da mini-série Rodando na Ciência você pode ler nos links abaixo:

Rodando na Ciência: Viçosa

Rodando na Ciência: Potsdam – Sampa

Rodando na Ciência: Boston

Rodando na Ciência: Honolulu

Rodando na Ciência: Coréia do Sul



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