Violência viral

por: Lucia Malla Biomédicas, Brasil, Ciência, Cotidiano, Educação, Evolução, Política

Hoje fui assistir a uma palestra na Escola de Medicina da Universidade do Havaí na hora do almoço. A palestra era sobre arbovírus, mas o que me levou até aquela sala não foi o tema em si, e sim a instituição de onde o palestrante vinha: FIOCRUZ.

Entretanto, não era um pesquisador brasileiro quem falava e sim um americano chamado Brett Ellis. Doutor pela Universidade de Tulane em New Orleans, Brett é um especialista em doenças infecciosas, especialmente virais transmitidas por artrópodes, principalmente mosquitos. (Entenda-se dengue, febre amarela, febre mayaro e febre do Nilo, entre outras.) Já esteve no Quênia e no sudeste asiático coletando e estudando mosquitos. Foi convidado a visitar por um ano o centro de pesquisas da Fiocruz em Recife, PE, para integrar os diferentes grupos de pesquisa envolvidos nessas epidemias – entenda-se gerenciar os diversos dados e egos de departamentos.

Lá, se deparou com uma realidade avassaladora: a desorganização do banco de dados sobre vírus e outbreaks do Brasil.

História da virologia brasileira

Durante a palestra, Brett mostrou uma linha do tempo com a história epidemiológica brasileira desde 1855, falou de Oswaldo Cruz e enfatizou o excelente esforço de levantamento de patógenos feito entre as décadas de 50 e 70 no país. Contou que a dengue foi completamente erradicada em 2 momentos da história brasileira – até ressurgir no final da década de 70 (o primeiro outbreak da nova fase veio em 1981).

Desde então, basicamente por falta de recursos financeiros, os esforços de levantamento cessaram, e hoje falta ainda muita informação ecológica, evolutiva e da biologia natural da relação vírus-animal nessas epidemias que são rotineiras em muitas regiões do país. Informações cruciais para um bom gerenciamento de campanhas, para solucionar um problema da população estão, de acordo com suas palavras, “escondidas em lab books”, não publicadas, esquecidas. Esse primeiro retrato da pesquisa no Brasil ao longo de décadas, com preciosidades dentro de gavetas empoeiradas, me deixou com um nó na garganta.

Violência viral

Recife, PE.

E não foi o único nó. Sua palestra começou contextualizando Recife para a platéia gringa: falou de Olinda, dos prédios históricos, do carnaval, dos ataques de tubarão e, principalmente, da violência gerada pela enorme desigualdade social. Para ilustrar a violência, Brett mostrou um slide com o site PEbodycount, que enumera os homicídios ocorridos em Pernambuco. Deprimente. É claro, para quem nunca ouviu falar do lugar, a impressão que ficou foi no mínimo “conturbada”.

Mas até aí, eu relevei, apesar de achar exagerado mostrar isso na palestra. É a realidade, entretanto, e de certa forma contextualizou-se para bem e para mal o local.

A violência viral

Incômodo maior veio quando começaram as perguntas, depois da palestra encerrada.

Como a platéia era de virologistas e/ou especialistas em doenças tropicais, muitas das questões envolviam a metodologia de coleta dos mosquitos, os buracos da pesquisa com relação à ecologia dos vírus na região metropolitana, principalmente a falta de pontos-chaves para entender a dinâmica populacional do mosquito, um dado que ajudaria a minimizar outbreaks. E a resposta de Brett foi o retrato da mais dura realidade: ele não pôde realizar melhores coletas por causa da violência.

Na suposta área onde seria na teoria o ponto ideal para obter dados importantes, todos os colegas de laboratório de Brett que tentaram coletar ali já haviam sido assaltados. O local era próximo a uma favela e servia de ponto de venda de narcóticos e desova de cadáveres. Ou seja, ninguém se arrisca a ir coletar mosquito à noite e/ou de madrugada num local escuro e com essa fama. E Brett não conseguiu encontrar um cidadão que o acompanhasse nessa aventura. (Pior: os relatos de amigos que dependem de coleta de material no campo corroboram esse cenário em outros pontos do país também.)

Como pesquisar?

Fiquei muito triste quando ouvi isso. Muito MESMO.

Porque um pesquisador gabaritado, que decide compartilhar seus esforços e conhecimento para um bem comum à população brasileira, que inicia o processo de organização do caos dos dados arbovirais do país, não consegue trabalhar em sua plenitude por conta de uma “externalidade” visceral, que silencia qualquer murmúrio de esperança num futuro melhor. Como se não bastasse a falta de recursos, os cortes constantes de verba e o desestímulo do Estado à atividade científica, o pesquisador já absorvido por diversos problemas em seu laboratório ainda tem que lidar com a incapacidade de coletar seus dados de maneira suficiente por conta dum problema cuja solução está completamente fora de seu alcance.

Brett lidou com tantos vírus de verdade na vida, tão mais potentes e patogênicos, mas não teve como se safar do mais deprimente entre os que há no planeta, que infecta a nossa rotina e mata sem piedade, fruto da combinação desastrosa de desigualdade e falta de educação básica, herança de administrações corruptas e descompromissadas com a ética e com o bem-estar de seus cidadãos. Brett não se livrou do vírus social que a violência é.

Dura realidade.

Nem sempre tudo de bom.



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