O Smart, esse simpático e afiado rapaz azul da blogosfera brasileira (a “blogoseira”), me deu um post de presente há uns dias. Well, posso estar errada, mas pelo menos achei que era para mim. Aceitei o presente de bom grado, mesmo com o nome do remetente meio “amadeirado”. Resolvi então continuar a conversa sugerida por aqui. O post fala sobre como anda a ciência coreana depois do escândalo da clonagem – e não só na Coréia do Sul, mas na Ásia em geral.
Uma reportagem bem interessante do Valor Econômico recitando toda a caracterização que já rodou pela mídia mundial e que acredito que muitos já devem ter se informado. Sinceramente, eu já perdi a conta de quantos artigos li sobre o assunto, e todos martelam nas mesmas teclas – teclas essas que não estão de todo erradas, aliás.
A ciência coreana pré-Hwang
A Coréia do Sul realmente “endeusou” Hwang, e por conta de uma vontade nacionalista exacerbada que o coreano possui, aceitaram de bom grado os “avanços” (hoje notoriamente falsos) que Hwang prometia sem maiores verificações ou discussões. Isso todo mundo já sabe, assim como sabemos também que os coreanos (e asiáticos em geral) são muito mais preocupados com a coletividade que com o individualismo. É uma característica social deles.
Mas gostaria de apenas acrescentar algumas “anotações” sobre tudo isso, principalmente contando um pouco da minha experiência de 2 anos trabalhando em um laboratório na Coréia do Sul como cientista. O que vejo, presencio e reflito diariamente lidando com os coreanos ao vivo e a cores na bancada.
Impressão da ciência coreana: lixos
Quando cheguei na Coréia do Sul, a primeira característica impactante foi a relativa “frouxidão” da regulamentação para lixos. Num laboratório de pesquisa, geralmente produz-se lixo perigoso às pessoas e ao ambiente. Dividimos este lixo laboratorial em: lixo biológico, lixo radioativo e lixo químico. Além do lixo comum, óbvio.
Nos EUA a regulamentação é rígida. Antes de começar a trabalhar em qualquer laboratório você é obrigado a fazer uma série de mini-cursos onde aprende como lidar com cada lixo (pelo menos curso para radioativos, para químicos, para biológicos e para segurança geral e comportamento em laboratório). Lixo radioativo é separado pelo tipo de radiação que emite (beta ou gama), lixo biológico é separado de acordo com o nível de biossegurança do laboratório, etc.
Na Coréia do Sul, o prédio em que trabalhamos não tem permissão para trabalhar com elementos radioativos. Então lixo radioativo não é obviamente um problema. Mas os demais lixos, a princípio, não eram sequer separados pelos demais usuários do lab.
Logo percebi porquê: o lixo é todo tratado como “perigoso”. Vai tudo para uma empresa, que coleta e separa os lixos e lida com o resto do processo. Mais prático para o pesquisador, sem dúvida. Mas devo confessar que ainda me incomoda saber que as pessoas que trabalham comigo podem não ter a mesma consciência sobre os problemas que jogar fora cada tubo ou par de luvas pode ter. Espero que não seja assim no país inteiro. Aliás, acho que depois da pressão e escrutinização sobre o trabalho do cientista, os coreanos podem ter aberto os olhos para esses pequenos problemas da rotina científica. Ainda assim, acho a política americana nesse ponto válida: todos deveríamos saber o mínimo sobre tratamento do lixo de laboratório. Pelo menos para, num caso de acidente, saber exatamente como proceder. Porque acidentes acontecem.
Discutir é fundamental
Outra questão prática que diferencia um laboratório sul-coreano de um laboratório ocidental em geral é a discussão científica em si. Os estudantes e cargos menores na hierarquia do laboratório praticamente são mudos perante qualquer assunto da pauta. Eles aceitam a palavra do chefe como a última – e a assumem sempre como a certa. Nada os convence a mudar, nada os faz refletir se o chefe não falou uma batatada.
Nossos encontros semanais para discutir progressos do laboratório eram monólogos estrangeiros. Por incrível que pareça, nossa chefe é bem diferente do coreano-padrão, e adora discutir, quer ouvir opiniões, saber o que consideramos interessante ou não para ser desenvolvido como projeto, etc. Ela, aliás, no dia seguinte à publicação do artigo de Hwang, demonstrou muito ceticismo, insinuando que a postura dele não era das mais adequadas ao meio científico. Minha chefe morou e trabalhou nos EUA, desenvolveu portanto a cultura da academia americana: aberta ao diálogo e aos questionamentos.
Mas parece que os coreanos não percebem isso. No início, achei que esse fato fosse um problema linguístico, de comunicação, afinal poucos coreanos expressam-se com fluência em inglês, e as reuniões que temos são todas em inglês. Mas conversando com minha chefe, ela me disse que mesmo em coreano, eles pouco discutem, falam menos ainda, aceitam tudo sem um questionamento sequer. Existe uma certa distância entre chefe e estudante que nunca é diminuída. De certa forma, isso demonstra exatamente que a raiz do problema está na mentalidade dos estudantes mesmo. O coreano é educado desde a escola primária a respeitar o professor como essa “figura máxima da autoridade, dono de um conhecimento imbatível e indiscutível”.
Questionar é fundamental
Não estou aqui pedindo às pessoas para de repente desrespeitarem seus professores, pelo contrário: o estudante deve ser incentivado a perguntar, para que traga argumentos novos, perspectivas diferentes sobre um problema. Dessa forma, há chance de crescimento para todos, estudantes e professores. É questionando que se aprende, não aceitando tudo mastigado, e é principalmente assim que a academia vive.
E aí vem o outro problema: a educação coreana.
Educação coreana
Se por um lado, as crianças coreanas estudam muito mais horas por dia que a média dos demais países, por outro a forma como as crianças estudam não é a mais adequada, a meu ver. Eles são levados a memorizar boa parte do que é ensinado (de matemática a ciências, de aulas de piano a conversações básicas em inglês!), e a cultura da decoreba é reinante. Todos sabemos que decoreba não ensina reflexão e crítica a ninguém. Portanto, o coreano quando entra na universidade – por uma avaliação decoreba, by the way – mantém-se fazendo o que ele sempre fez: decorar. De certa forma gera as hordas de jovens que não conseguem discutir um assunto que vemos no mercado de trabalho atual.
A falta de discussão científica associada ao medo do confronto com o indivíduo hierarquicamente superior já traria ao país um certo caos científico. Afinal, ciência, muito mais que respostas, é o caminho, é a pergunta, é a análise, é como você chegou à resposta. Saber pensar cientificamente, saber questionar com ceticismo e mente aberta, valem muito mais que a resposta em si para o cientista.
Mas aí entra o outro problema que até então ninguém havia se tocado, que a humilhação sofrida com o caso Hwang trouxe à tona. Fazer ciência é uma atividade a longo-prazo, inquisitiva e auto-inquisidora, onde paciência é a virtude máxima para se alcançar bons resultados. Mas também é uma atividade de alto risco, onde a probabilidade do fracasso é muito maior que o sucesso. A economia coreana é sedenta de sucessos, mas a curto prazo.
A cultura pali pali

Em coreano, chama-se “pali pali” a essa cultura de querer toda resposta para um problema rapidamente, “pra ontem”. (Literalmente, “pali pali” significa “rápido, rápido”. Ao contrário do que os ocidentais imaginam, o coreano não é um povo muito paciente em sua natureza.) Com o escândalo Hwang, o estilo de vida “pali pali” vem sendo diariamente questionado nos jornais, na TV e nos demais meios de comunicação. Afinal, toda aquela “fama” de workaholic dele e do seu laboratório, onde as pessoas trabalhavam até 16 horas por dia, sem parar nem em feriados, etc. Interessantemente, o coreano médio não se sente satisfeito em cultuar o pali pali. Mas também não sabe como sair dessa encruzilhada, porque foi justamente o modo pali pali de ser que tirou o país da miséria há algumas décadas e o alavancou à condição de desenvolvido. Foi principalmente investindo em indústrias de retorno rápido e certo, como… Tecnologia.
A Coréia investiu montantes insanos em tecnologia, em todas as vertentes possíveis. LG, Samsung e Hyundai estão nas nossas vidas, nos mostrando o lucro que produzir celulares, eletrônicos e carros com tecnologia de ponta podem trazer, as benesses que um povo pode usufruir quando seu maior bem é o conhecimento tecnológico. Foi com essa mentalidade tecnológica, do pali pali que a Coréia do Sul decidiu-se a entrar no nada rápido mundo da ciência.
Ciência pali pali
Nas primeiras reuniões de laboratório de que participei aqui, não antenei para essa dicotomia – embora tivesse um sentimento esquisito, como uma formiguinha na minha orelha. Aos poucos, foi ficando claro: os coreanos querem fazer ciência com a velocidade da tecnologia, e isso não se consegue nem com todos os recursos do planeta.
Porque o dinheiro não é a peça mais fundamental da geração de ciência. Seu maior bem são cérebros pensantes. A tecnologia deriva em boa parte do conhecimento científico, mas essa derivação não significa que ambas andem na mesma velocidade, e principalmente, que requeiram os mesmos padrões filosóficos. Pelo contrário: a tecnologia é a geração de técnicas, como o próprio nome implica, é mecânica em sua natureza, enquanto a ciência é a geração de conhecimento per se, que a meu ver só é alcançado por discussão, análise crítica, é principalmente dinâmica.
Ceticismo é fundamental
Hwang fingiu ter desenvolvido uma técnica em que trazia a ciência para um patamar tecnológico. Entretanto, o escândalo em torno dele mostrou tristemente ao país que talvez isso não seja tão fácil assim. Quando você lida com ciência, muito mais que hierarquia, decoreba, nacionalismo ou tecnologia, você precisa de ceticismo – aos outros, e principalmente em relação ao seu próprio trabalho. A Coréia do Sul pode ter um futuro brilhante como potência científica, mas precisa primeiro resolver essas disparidades filosóficas, sociais e educacionais, antes de pensar em qualquer próximo passo. Para que não tropece mais vezes com um outro Hwang, ansioso por reconhecimento pali pali.
Tudo de bom sempre.