Era cerca de 8 da noite e estávamos fazendo as malas para mais uma aventura de mergulho na Big Island quando resolvi ligar o twitter e soube da bomba: um mega-terremoto ocorrera no Japão e um tsunami se encaminhava para o Havaí. Liguei a TV, para saber maiores detalhes. A voz dos âncoras do Hawaii News Now, que àquela altura já estavam em plantão contínuo, não mentiam: desta vez, a coisa parecia feia mesmo.
Para não repetir os mesmos erros do outro tsunami que aconteceu em 2010 no Havaí, liguei imediatamente o skype para falar com meus pais no Brasil e acalmá-los antes que soubessem pela TV convencional do acontecido – afinal, na CNN (e na Globo) é sempre pior, como sempre diz o sábio Riq Freire. Precisava reafirmar que estava bem, que moro no alto do morro, que estava em casa no conforto do lar e que daqui não sairia até toda a confusão de tsunami passar. Meu pai, que fora acordado ainda de madrugada pela minha ligação, respondeu meio grogue de sono que ficara feliz que eu ligara antes. Ótimo, missão de tranquilização cumprida.
Comecei a seguir no twitter e na TV toda a movimentação e informação sobre o terremoto e o tsunami. As notícias que chegavam do Japão eram trágicas, mas ainda muito incertas – afinal, o evento acabara de acontecer. O pesquisador do Pacific Tsunami Warning Center começou a ser entrevistado na TV e no meio da entrevista, a primeira sirene de aviso de tsunami começou a tocar. Não sei se era o fato de estar de noite, e de o tsunami estar previsto para chegar ao Havaí no meio da madrugada, ou da magnitude do terremoto no Japão e da proximidade maior que o do Chile, mas de repente a situação parecia bem mais assustadora. Ou pelo menos, mais tensa que o usual. Comecei a me preocupar com meus amigos que moram na beira da praia na Micronésia, onde sistemas de alarme para tsunami ainda são fracos. (Depois soube que eles nada sofreram além de uma pequena marola.)
O twitter fervilhava. Muitas pessoas, amigas e conhecidas, preocupadas, mandando DMs, emails e mensagens que me tocaram profundamente. A gente acha que mídia social é só farra, mas estamos numa rede de pessoas, e nesses momentos mais complicados é que a gente percebe que está cercado de pessoas muito bacanas mesmo. Não tenho o que reclamar. Obrigada de coração a todos pela força.
Mas ao saber da notícia, começou também entre eu e André um dilema maior: cancelar ou não a viagem? Afinal, a Big Island estava prevista para ser uma das mais atingidas (e no final das contas, foi mesmo). Nosso vôo saía de manhãzinha. O aeroporto de Honolulu, por sua vez, fica na beira da praia – se o tsunami fosse muito forte, com certeza fecharia por um bom tempo o mesmo (o aeroporto terminou ficando fechado apenas por poucas horas, felizmente). Era uma viagem de mergulho, que depende das boas condições do mar – o que durante um tsunami de verdade é quase impossível acontecer. Mas, apesar de tudo, resolvemos exercitar nosso lado poliana e não cancelamos a viagem. Ainda bem.
Às 3:30 da manhã, depois de umas 5 tocadas de sirene de alarme de tsunami e quando vi a cena do recife de coral do Diamond Head completamente exposto, o mar muito mais recuado que no tsunami de 2010, a ansiedade, tensão e apreensão me venceram e resolvi fazer o inimaginável: ir dormir, para não pensar mais no ocorrido. Tinha tido um dia “daqueles”, super-ocupado, com palestra em simpósio e arguição sobre minha pesquisa, de modo que começou a bater a exaustão mental e física.
Acordamos às 6 da manhã para ir pro aeroporto. As notícias na TV não eram nada bonitas: o Japão em catástrofe total, potencialmente nuclear inclusive, e o tsunami causara destruição também aqui no Havaí. Pior: o Japão não parava de tremer, os aftershocks não cessavam (alguns gerando até tidal waves). E um terremoto acontecera na Big Island. Fomos pro aeroporto. Que não estava fechado, diga-se de passagem. Aliás, a única perturbação da “normalidade” no aeroporto era vista no painel de embarque: todos os vôos para Narita cancelados, além de um vôo cancelado também para Apia, em Samoa.
Nosso vôo atrasou por um motivo exógeno (a aeromoça se atrasou). Com 1h de atraso, levantamos vôo de Honolulu. De cima, deu pra ver alguns barcos virados no píer perto de Sand Island. Chegamos em Kona e, além do vog super-forte, nenhum sinal aparente de problema. Até que fomos ao centrinho da cidade.
A Alii Drive, principal avenida beira-mar de Kona, estava toda cheia de barro e úmida. Algumas garagens com resquícios de água e pedaços de madeira espalhados como que “trazidos pela maré”. A polícia fechara um pedaço da avenida que aparentemente sofrera mais danos. Muita gente se aproximava do mar para ver a movimentação: realmente o mar não estava pra peixe.
Ligamos para a operadora de mergulho e o óbvio nos foi dito: dado que ainda aconteciam terremotos fortes no Japão e terremotos mais fracos mas ainda assim consideráveis ali mesmo na Big Island, todas as atividades de mergulho autônomo estavam canceladas até que o alerta de tsunami acabasse. Enquanto o mar estivesse indo e vindo, nada de mergulho. Um resquício de frustração se abateu na gente, já que um dos mergulhos que André queria fazer era o “black water dive”, que não acontece todos os dias e depende de um monte de variáveis. (Basicamente um mergulho noturno em mar aberto, para ver plâncton e bichos maiores que são atraídos… por você.)
Mas desde sempre, aprendemos a fazer limonada com limões. Decidimos transformar nossa viagem-limão em viagem-limonada. E fazer o possível para tirar algum proveito turístico daquela estadia em Kona – aliás, um dos maiores problemas para lugares que dependem de turismo é, depois de uma tragédia natural, perderem seus turistas, fonte de renda local. Não queríamos piorar as coisas. Afinal, a vida seguia a mesma para a maioria da população – apesar dos estragos reais, poucos foram os que efetivamente perderam bens materiais no Havaí com o tsunami, principalmente quando comparados com os japoneses (eu sei, é complicado ficar comparando tragédias, mas é esse clima geral que reina no Havaí neste momento: foi ruim, mas pelo menos estamos bem. Nenhuma morte registrada, felizmente.) Depois de almoçar um hambúrguer ótimo no Ultimate Burger, fomos fazer um passeio por uma fazenda de criação de cavalos-marinhos – um barato, depois conto com mais detalhes em outro post.
Após o passeio findo, já era quase 4 da tarde quando resolvemos dar uma passada em Kealakekua Bay, uma das minhas praias prediletas no Havaí. É lá que ficam os golfinhos rotadores, e nosso plano inicial era snorkelar com eles na manhã seguinte. Precisávamos checar como estavam as condições gerais com a passagem do tsunami. E foi aí que a realidade bateu na porta e escancarou a ferida.
Kealakekua estava irreconhecível. Me deu uma dor imensa no coração quando vi a quantidade de escombros espalhados pelas pedrinhas da praia (não tem areia lá).
Comecei a conversar com o pessoal que estava pela praia e soubemos que uma casa de 2 andares fora carregada de uma das pontas da praia e afundara ali, no canto da baía. Naquele momento, só restava o telhado de fora.
Só víamos o telhado da casa, que foi carregada pelas ondas até um recanto da baía.
Absolutamente tudo que estava dentro da casa fora levado pela maré, e boa parte estava ali, destroçada na praia. A água do mar marrom, os diversos pedaços de móveis e até de um painel solar que iam e viam ao sabor das ondas – e o mar ainda recuando e voltando num certo grau preocupante – a inundação de uma área de swamp lá no fundo da praia, onde foram achados peixinhos de recife depois que o tsunami passou, tudo aquilo me cortava o coração de uma forma que não dava pra explicar. Chocada mesmo.
(E de repente me toquei do que seria uma casa afundada perante as milhares de casa que foram carregadas, totalmente destruídas, no Japão. Realmente, não há comparação neste caso. O que houve – e acontece agora no Japão – é uma catástrofe sem precedentes históricos.)
As casas da vizinhança ali também tinham sofrido bastante. Uma delas completamente caída, outras com fios de eletricidade pelo chão, muitos carros detonados, molhados ainda das ondas.
Destroços de vida espalhados pelo chão da rua, pela costa. Pessoas com caras desoladas, olhares infinitos, perdidos, de quem ainda não acredita na realidade que acontece. Muito duro.
E no meio desta cena deprimente, os golfinhos rotadores não paravam de pular na baía, como a trazer um pedacinho de esperança de que a vida continuará para aquelas pessoas que perderam tudo que tinham. Uma lágrima desceu do meu olho.
De Kealakekua, voltamos para o hotel, onde finalmente vimos na TV as cenas mais marcantes do tsunami do Japão, aquelas em que o mar em fúria irreconhecível invade cidades e carrega tudo que vê pela frente. São cenas que a gente nunca mais deve esquecer. Elas serão a base para podermos montar nossos sistemas de segurança futuros, pros futuros investimentos em tecnologia preventiva mais eficientes e robustas, que se traduzam em menos mortes.
No dia seguinte, de manhã cedo, saímos em direção ao Kilauea. Mas antes uma parada estratégica: Pu’uhonua o Honaunau, ou City of Refuge. O Parque Histórico fica no litoral e estava fechado, porque sofrera alguns pequenos danos com o tsunami. Mas um pouco antes da entrada pro parque, há um acesso público para a costa, e nós resolvemos arriscar. Estava lotado de gente na praia, snorkelando, mergulhando com tanque, todos curtindo uma água com visibilidade impressionante. Achamos nosso point.
Caímos na água ali em Honaunau um dia depois do tsunami. A maré ainda fazia movimentos “estranhos”, mas no geral, o mar estava calmíssimo e o recife de coral estava mais lindo e perfeito que nunca. A única lembrança de que um tsunami passara por ali foi ver alguns pedaços de galhos, árvores e um pneu no fundo do recife de coral. Muitos peixes e vimos até uma raia-chita se alimentando tranquilamente. Um pai com uma criança de uns 4 anos ensinava à filha como snorkelar – e a menina estava super-entusiasmada com os peixes e o colorido coralino que via. Com tanta saúde submersa, Honaunau é, sem dúvida, um dos melhores points de mergulho do Havaí.
Em Honaunau, galhos afundados pelo coral eram a única lembrança de que algo “atípico” acontecera por ali; no caso, a passagem de um tsunami.
Depois de algumas horas na água, seguimos viagem para o Kilauea. Mas isso, e o resto da viagem, é papo pra outro(s) post(s).
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– O dia seguinte ao tsunami foi definitivamente atípico aqui no Havaí. Mas o Japão terá pela frente meses, talvez anos, de muita atipicidade, então os havaianos estão cientes disso, e o clima aqui é muito de alívio, de “nada de grave aconteceu”, mesmo com perdas de barcos, píers e casas. Porque os problemas aqui acabaram, mas no Japão só se avolumam, agora com uma hecatombe nuclear adicionada à equação de perda. É para lá que nossos olhos e corações e esforços de ajuda devem estar voltados no momento, sem dúvida. Porque é uma catástrofe sem precedentes.
– Para doar para as vítimas do Japão, acesse Red Cross.
– Kealakekua Bay foi a praia que mais sofreu com a passagem do tsunami em todo o litoral do Havaí.
– Pitaco de cientista viajante na maionese: Não sou geóloga nem vulcanóloga muito menos sismóloga, mas nada me tira da cabeça que a explosão feroz do Kilauea na semana anterior já fora um indício de que a placa tectônica do Pacífico estava se “movimentando” de maneira “unusual” – Kilauea e terremoto japonês são eventos até o momento apenas coincidentes, mas o que eu desconfio (mero chute, entenda-se) podem ter uma relação causal (nesta entrevista ao Boing Boing, o diretor do Pacific Tsunami Warning Center, Brian Shiro, conta como um vulcão/terremoto pode influenciar a existência/erupção de outro e como isto é uma idéia recente na geologia). Porque o Kilauea reflete o hotspot havaiano, e a atividade de lava do vulcão parou muito de repente de 4a pra 5a feira, e algumas horas depois, bum!, um terremoto de dimensões gigantescas na área de maior pressão da placa. Algum geólogo ou similar me lendo para dar um pitaco menos leigo?
– Um ótimo post sobre a ciência do terremoto no Japão e o tsunami gerado no Georneys; outro excelente post sobre o evento radioativo que se desenrola em Fukushima no blog Brontossauros. E um post do Pete at Midway sobre como foi a passagem do tsunami no atol de Midway, aqui perto do Havaí.
– Off-topic: depois conto mais sobre o novo blog, que ainda não está 100% pronto. Por enquanto, vão se aprochegando que a casa também é de vocês, galera amiga! E me avisem por favor se encontrarem qualquer problema. O feed continua o mesmo e a Malla aqui, a viajante de sempre, a vagar e divagar pelo mundo.