No final de agosto passei três dias na cidade de Kassel, na Alemanha. Fui para visitar a documenta 14, exposição de arte contemporânea que ocorre de 5 em 5 anos. Em 2017, a documenta de Kassel foi até o dia 17 de setembro.
Esta foi minha segunda vez na documenta – fui em 1997, na documenta X. Eu estava, portanto, muito animada para rever a cidade e o clima de arte que a ronda durante a documenta.

A documenta é uma das maiores exposições de arte contemporânea da atualidade. As obras ali expostas ficam espalhadas pela cidade, em diversos museus, galerias e prédios. Muitas, inclusive, ficam pelas ruas mesmo. Neste ano, senti uma tendência muito mais forte à arte com mensagem político-social. Se em 1997 muitas obras carregavam um quê introspectivo claro e ousado, este ano sem dúvida a arte como ferramenta para a discussão e reflexão política e social mais abrangente foi predominante. Um bom eco do momento que vivemos no mundo, de instabilidade política geral.

É uma delícia estar em Kassel durante a documenta. Porque esta cidade da Alemanha respira e exala arte contemporânea pelas esquinas e parques. Não tem como não se empolgar quando a contemporaneidade se integra à cidade. Afinal, vcê se depara com peças admiráveis que te fazem pensar diferente. É um alento a este coração malla, que acredita profundamente que a gente precisa da arte mais do que nunca neste momento tenso da história.
Meu roteiro para a documenta de Kassel
Durante os dias em Kassel, me hospedei no Tryp by Windham perto da estação de trem central – que também tinha obras de arte da documenta. A localização do hotel facilitou a ida/vinda de trem para Frankfurt-am-Main, cidade grande da Alemanha mais próxima dali. Além disso, valeu a pena por me permitir ir à pé para os locais de exposição que achei mais interessantes, como o Museu Friedricianum, o Neue Galerie, o Documenta Halle e o Neue Neue Galerie.
Dos 35 pontos de exposição em Kassel, visitei 21 nos 2 dias inteiros de andanças pela cidade que fiz. Apesar da curta estadia, fiquei mais que satisfeita, pois vi muita arte interessante e desafiadora.
Não sou uma expert em arte ou curadoria. A arte me atinge como espectadora. E é nesse papel que deixo aqui no blog este post, para meu arquivo pessoal. Registro algumas das ideias que a documenta 14 na Alemanha me suscitou. Além das reflexões que brotaram, e das obras que mais curti/me impactaram.
A Crise dos Refugiados
A Europa, incluindo Alemanha, está mergulhada numa crise sem precedentes por conta da quantidade enorme de refugiados que vêm aportando em suas fronteiras costeiras, vindos de áreas de conflito ou de perturbação ambiental extrema no norte da África e no Oriente Médio. Para mim, este foi o tema mais presente da documenta 14. A exposição na Alemanha trouxe luz especial a esta crise humanitária da atualidade, com um número incrível de obras para incomodar o espectador.
Das diversas obras que abordaram este tema, as que mais me impactaram estão descritas aí embaixo.
“36º 45’N – 021º 56′”


Obra do grego de Kalamata Dimitris Tzamouranis. A pintura em tela parecia nao ter nada de especial, mas quando a gente chega perto e vê o realismo com que ele retrata o mar violento, sugerindo em minha interpretação o que os refugiados encaram ao atravessar para a Grécia… É perfeita. Os detalhes da pintura são assustadoramente impressionantes e foi minha obra favorita de toda a documenta. (Adoro marinhas, né… Tem isso também.)
“Biinjyia’iing Onji (From inside)”

Escultura da canadense Rebecca Belmore, que “montou” uma barraca em mármore nos jardins do Grimmwelt Museum. A barraca, aliás, sublinha a meu ver a natureza permanente dos refugiados que chegam na Europa. A escultura é de uma força incrível, pois o mármore gelado ainda sugere a frieza com que se lida com esta crise hoje.
“Fluchtzieleuropahavarieschallkörper”

Obra do mexicano Guillermo Galindo, que basicamente criou instrumentos musicais novos com materiais deixados para trás pelos imigrantes ilegais que cruzam a fronteira do México com os EUA pelo deserto. O fato de você poder tocar e criar música a partir de um material tão simbólico é de uma delicadeza tocante. Estava no Documenta Halle.
“When we were exhaling images”


Instalação do iraquiano Hiwa K., uma instalação que estava no jardim do Friedrichsplatz ao lado do Documenta Halle, feita com manilhas amarelas de amianto empilhadas. Cada manilha era um cômodo de uma casa. A instalação foi feita em conjunto com os alunos de design de uma escola de arte em Kassel. Praticamente jogava na nossa cara as condições subhumanas de vida a que os refugiados estão expostos em sua jornada por segurança.
Outras obras de destaque

Além destas obras, outra obra que comentava sobre os conflitos no Oriente Médio me deixou com um nó na garganta. “Nassib’s Bakery”, da artista libanesa Mounira Al Sohl, era a representação fiel da padaria de Nassib em Beirute, no Líbano, na década de 80, que foi bombardeada por ser “famosa” na cidade em meio à guerra. Toda a instalação da padaria – que era especializada em za’atar pizza – estava montada em um dos Glass Pavillions da documenta.
Acompanhava uma exposição dos desenhos feitos pela artista de refugiados atuais, em transição por Atenas ou Kassel, feitas em lápis e papel amarelo de rascunho, chamada “I strongly believe in our right to be frivolous”. Mensagem mais clara não há.
A Ascensão da Extrema Direita
De uma certa forma, uma reação à crise de refugiados – e em minha opinião uma resposta clara à superpopulação do planeta (mas isso é papo pra outro post…). De qualquer forma, a documenta trouxe obras quase de cunho histórico, principalmente estando na Alemanha. Para relembrar os horrores de uma guerra e do holocausto, repudiar o nazismo, a xenofobia e tentar celebrar a diversidade.

Quem me conhece, sabe que eu não sou fã de vídeo. Interessantemente, duas vídeo-obras que trouxeram esta temática e me fizeram pensar bastante estavam neste formato.
Uma do Hiwa K (again…), “View from above”, que acompanhava uma maquete da cidade filmada. Basicamente era Kassel depois dos bombardeios da Segunda Guerra Mundial. Esta obra estava pertinentemente no Stadt Museum ao lado da sala do museu que conta os momentos pré e pós-guerra. A outra obra foi “77sqm_9:26min”, um vídeo estilo CSI descrevendo a contra-investigação do assassinato de um imigrante do Oriente Médio por neonazistas em Kassel. O vídeo expõe todo o racismo (ainda) do sistema judicial na Alemanha. O assassinato ocorreu a poucos metros de distância do local da exposição deste vídeo na Neue Neue Galerie, e os fatos ali narrados trucam a objetividade germânica na investigação. O vídeo pode ser assistido online aqui.
Outro fato que ocorreu é que, ao me deparar com a obra “Real Nazis” de Piotr Uklanski na Neue Galerie, não consegui me segurar. Chorei de revolta. Porque, ao escancarar a dimensão do problema, me deu um embrulho no estômago gigante. Arte que incomodou mesmo.
A situação da Grécia
Uma das inovações da documenta 14 foi estar sediada em duas cidades: Kassel na Alemanha e Atenas, na Grécia. A documenta de Atenas terminou antes da de Kassel. Mas a duplicidade e/ou complementariedade das obras e de muitos artistas trouxe pro palco alemão uma discussão necessária. Sobre a Grécia, sua crise política e econômica na zona do euro, sua localização estratégica como ponto de entrada para os refugiados da crise mencionada acima, aliadas à carga importantíssima histórica para nossa cultura. Todas estas questões contemporâneas transformaram a Grécia num ponto nevrálgico para a Europa. Portanto, nada mais lógico que trazê-la para o forefront da arte contemporânea também na Alemanha. Para a frente das reflexões e quem sabe gerar mais proximidade.


Muitos artistas gregos tiveram destaque especial na documenta em Kassel. Por outro lado, outros artistas se inspiraram na Grécia para suas obras. Como por exemplo a argentina Marta Minujín, que construiu em meio a Friedrichsplatz a instalação “The Parthenon of Books”. O efeito visual desta obra de arte contemporânea era sensacional, parecia de longe uma imagem chuviscada de TV fora do ar. A estrutura era toda construída com livros que em algum momento da história foram proibidos de circularem, e os livros serão distribuídos no último dia da documenta 14. Simplesmente incrível andar por dentro deste Partenon!
(O mais legal é que ao lado do Partenon de Livros estava o cabeçalho-instalação “Beingsafeisscary” do turco Banu Cennetoglu. Banu trocou a inscrição do Friedricianum para uma que refletia nossos medos dos tempos atuais…)

Aludindo à estruturas gregas, tinha ainda o “Acropolis Redux”, feito pelo artista sul-africano Kendell Geers. A obra estava no Friedricianum. Era composta de um monte de arame farpado fazendo uma estrutura de Acropólis. Será que o ápice da arquitetura de uma civilização chegou enfim a uma fronteira?
Mudanças climáticas
Cito aqui apenas para mencionar que foi uma das grandes ausências da documenta em questão de tema. Pouquíssimas obras comentavam/tocavam neste assunto tão necessário. Talvez porque já tenha sido esgotado em outras eras. Ou porque a crise dos refugiados abocanhou esta (e já é uma consequência da mesma).

Mas confesso que fiquei um pouco decepcionada. Esperava muito mais instalações, vídeos ou o que seja envolvendo clima. Talvez o artista Pope.L esteja certo e “Green people are a recent invention”…

Pope.L, aliás, foi o artista cujas obras no total mais curti. Seu “Whispering Campaign” espalhado em diversos pontos da cidade me faziam dar sorrisos a cada vez que os achava. Como por exemplo durante meu almoço de gnocchis na L’Osteria, em plena Königsplatz.
A documenta que me fez sorrir
Nem só de reflexão política-social vive a documenta. Muitas das obras me deixaram com um sorriso no rosto enfim por pura arte estética. Arte pela arte. Ou pela sacada original, ou pela contemplação sem expectativas. Ou ainda pelo sentimento otimista que trazia, de um futuro melhor ainda possível. Meu lado poliana, afinal, sempre agradece estes momentos. Viva a arte contemporânea.
Os quadros coloridos

Dentre as obras que me deram alento de otimismo, destaco os quadros coloridérrimos do americano Stanley Whitney. Em meio a tantos tons de cinza ou pastéis, sem dúvida um sopro de vida colorida no Documenta Halle.
“Jali”

Outra obra “fofa” foi a da artista turca Nevin Aladag, “Jali”. Uma parede de cerâmica decorada vazada típica da Índia. A parede que mostra mas separa de uma forma esteticamente elegante. Não me preocupei se a obra tinha algum significado maior. A meus olhos, valeu bastante por ser pura e simplesmente agradável.
“The End”

Já “The End”, do grego Nikos Alexious, me capturou pelo teor lúdico. Era uma animação digital super-colorida em mosaicos. A animação estava sendo projetada no chão logo na entrada do Friedricianum. Me lembrou, aliás, a animação do teamLab na Bienal de Honolulu. Trocentas selfies com a cobertura colorida que a animação proporcionava. Foi muito legal ver as pessoas literalmente se jogando no chão para a arte contemporânea!
Abstrações de Olaf Holzapfel

Outro destaque incrível foram os quadros abstratos do alemão Olaf Holzapfel, feitos com canudo e compensado. As diferenças de tons que ele conseguiu com os canudos e o efeito final quase cinético sem dúvida me ganharam imediatamente. As obras dele estavam no Bellevue, numa sala dedicada.
“Photo Notes 1992-2017”


E, para finalizar, uma reflexão sobre a moda e a ilusão que temos de ser “diferentes”. A fotografia histórico-arquivista do holandês Hans Eijkelboom em “Photo Notes 1992-2017” mostra exatamente o quanto somos iguais nesta busca pela diferença. Ou ainda, o quanto somos diferentes mesmo sendo “iguais”. Afinal, ele fotografou em períodos de 1-4 horas pessoas randômicas andando em algum lugar do planeta com roupas similares – por 25 anos. (Um dos períodos foi na Avenida Paulista, fotografando motoboys. É impressionante como no resultado final ficam todos parecidos.)
Uma experimentação simples e que gera muuuuito #FoodForThought.
É isso. Depois de me afogar em arte contemporânea, voltei então para Frankfurt com a alma lavada. Quando fui na primeira documenta em 1997, jamais imaginava um dia voltar. Portanto, só posso me sentir muito grata por ter tido a oportunidade desta experiência insana de deliciosa por duas vezes na vida. No trem, vendo a paisagem passar, escrevi este post, já certamente saudosa da documenta 14. 🙂
Tudo de arte sempre.

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