Dos tipos de viagem

Dos tipos de viagem

O post de hoje vem de uma convidada mais que especial. Conheci a Flávia (a.k.a. LadyRasta) há pouco mais de dois anos, na ConVnVenção do Terraço Itália (fotos melhores aqui). Foi questão de clique: gostei dela logo de cara. Com o tempo e os encontros, fomos ficando mais amigas, e olhando para a história desse blog, concluí que não dava para não convocá-la a escrever nesta série de participações especiais, com todo seu jeito único de ser e de se expressar. Porque ela foi uma das grandes amigas que este blog me trouxe. Claro, a Flávia escreveu mais um daqueles posts deliciosos, que poderia ser incluído no Método LadyRasta de educar crianças, e que traz sua experiência bem-sucedida num campo que muito me interessa: viagens. Dizem as más línguas que depois que você tem filho, não dá mais pra viajar, etc. e tal. (O Jorge Gira já vem desbancando essa falácia pra gente há tempos.) Mas a Flávia, com esse post, sedimenta uma opinião sobre o tema que, mesmo sem filhos ainda, compartilho desde sempre – desde, aliás, minha própria experiência pessoal de infância: não só dá pra viajar com crianças como esse é um componente importante da educação delas – né, papai? (Quem mesmo foi acampar em uma praia deserta do estado do Rio quando eu era ainda um bebê de colo, hem? Quem, quem? :D). Leiam e reflitam. E Flávia, obrigada por tanto carinho. 🙂

(Todas as fotos deste post foram gentilmente cedidas pela Flávia, vindas diretamente de seu arquivo pessoal. Exceto a minha foto com ela e a Pat, tirada no Luluzinha Camp de 2008. 🙂 )

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Ser viajante também se aprende de pequeno… inclusive os “perrengues” (o melhor da história, diga-se de passagem.) => adição da Malla.

“Mã, quantas coisas nós temos que pegar pra chegar nesse lugar do Réveillon?”

A pergunta, feita por meu filho com então 10 anos, fazia sentido, tendo em vista que no ano anterior, para chegarmos a Boipeba, foram necessários os seguintes meios de transporte:

– avião de SP a Salvador;

– lancha de Salvador a Morro de São Paulo;

– carrinhos de mão para carregar a nossa bagagem até a Land Rover que seria nosso próximo meio de transporte;

– a Land Rover até a margem do Rio do Inferno;

– barquinho simples para atravessar o Rio.

Pude ver um certo desapontamento quando disse que iríamos pegar um avião e depois andar umas 2 horas de carro; confesso ter ficado orgulhosa (mais uma vez), do filho que tenho, e que é meu companheiro inseparável de viagens desde sempre. Imaginem vocês que ainda bebê, por insistência do avô (que dizia que lugar de filho era ao lado dos pais), ele fez Salvador-São Paulo duas vezes!

(parênteses para falar do meu pai)

Meu pai fez isso comigo desde menina. Fui acostumada a viajar de carro desde cedo, trajetos compridos. Pra mim, 600 quilômetros eram ali do lado, sabem? A primeira vez que fui à Europa, meu pai fez Paris-Budapeste de carro no inverno; e não foi em um mês, acredite. Além disso, perdi conta das vezes em que pegávamos o mapa da América Latina pra projetar uma ida aos Estados Unidos de carro – passando pela Amazônia, contar o detalhe da “bandeira que teria um raio no meio” que seria usada numa emergência para “despistarmos” as revoluções da América Central (tá bom, essa parte era brincadeira… acho). Paguei micos medonhos em algumas viagens (e o carro parar na estrada na neve, ficar perdido no meio do nada no Canadá), alguns totalmente hilários (com direito a entrar numa casa na Alemanha que nem no “Férias Frustradas”) – mas como meu filho diz, “mico é o que diferencia uma viagem mesmo de uma excursão, mico é legal, Mã”. Pensando bem, faz sentido… Foi meu pai quem me ensinou o gosto pelas viagens, e como elas deviam ser feitas: pra ele, elas deviam ser planejadas sim, mas o planejamento nunca impediu mudanças de última hora – justamente porque sabíamos o que estávamos fazendo. Aliás, era bem normal ele inventar de mudar os planos de uma hora pra outra, porque alguma coisa havia interessado mais ou algum fato nos levou a tanto. Com isso tudo aprendi algumas coisas: a) que não podemos ter medo do desconhecido e que é bom ir em frente; b) que devemos confiar no instinto e que às vezes é bom sermos flexíveis e encararmos mudanças; c) que podemos (e devemos, obviamente) ter cautela, prudência, mas o medo não deve nos paralisar a ponto de não fazermos nada.

(fecha parênteses)

Como eu dizia: talvez pela minha criação (minha avó materna também foi uma que veio aos 12 anos com a mãe, sozinhas, de Portugal) nunca achei estranho pegar um carro, colocar uma criança de 4 anos no banco de trás e sair por aí; já separada, tivemos nossa fase de Trancoso e Caraíva, onde ia sozinha com meu filho, atolando carros, pegando chuva, fazendo coisas do arco da velha.

Fomos sozinhos de carro no meio do sertão ver o Rio São Francisco e o lugar onde Lampião morreu (onde passamos no meio de acampamentos de Sem Terra que não são exatamente o conto da carochinha que nos querem fazer crer, com homens armados controlando a estrada); fui com ele e minha sobrinha pra Noronha, onde andávamos de bug o dia inteiro.

Ah! Teve a fase em que íamos para uma comunidade de remanescentes de quilombolas perto de Paraty, onde ficávamos num 2 cômodos sem luz tomando banho de rio – muitas vezes só eu e ele, sozinhos…

Por vontade dele (já contaminado com esse vírus do viajante) fomos a cavalo pro Restaurante da Luzia, durante nosso périplo pelos Lençóis Maranhenses só para comer os camarões que o Riq Freire tanto promove.

Ah sim! Embarquei para os Lençóis Maranhenses no dia seguinte daquele acidente medonho da Gol, e naquele dia ele teve coragem de dizer que estava com medo (sim, isso pra mim é coragem, pois só conseguimos dominar aquilo que conhecemos), ao que respondi que todo mundo ali estava amedrontado, mas que ou nós enfrentávamos o medo e íamos em frente, ou deixávamos que o medo mandasse em nós dali em diante. Ele entendeu – e aguentou as 18 horas de jornada com mais serenidade que eu, devo admitir.

Tanto entendeu que com orgulho embarquei-o sozinho para Londres aos 11 anos de idade – a pedido dele, porque ele queria ver os primos e os tios.

Chorei pra burro quando vi meu filho entrando no portão de imigração, indo sozinho pra Inglaterra; chorei porque sabia que aquilo era sinal de algumas coisas: de que ele estava crescendo, crescendo com equilíbrio, e sobretudo, que esse equilíbrio permitia a ele enfrentar o medo, como de certa forma ele demonstou na carta que escreveu ao melhor amigo quando estava no avião (aliás, hábito que ele também “pegou” de mim).

Pensando bem, aquele embarque mostrava que mais uma pessoa estava contaminada com aquela ânsia de conhecer, de ir em frente, de saber o que existe além da nossa vista, e que medo é algo pra ser respeitado e na sequência, dominado. E quem aprende a dominar o medo vai embora né? Eu sei, é pra isso que criamos os filhos – mas na hora é um misto de felicidade, emoção, tristeza pela ruptura que… chorar é a única coisa possível a se fazer… Ao ver meu filho embarcando sozinho pra Londres foi como se eu visse ele começando a viver a vida dele sabem?

Vou incorrer num cliché batidaço, mas quem me conhece sabe que defendo a tese de que clichés só são clichés porque ocorrem muito: viver não deixa de ser uma viagem (sim, eu sei, super tufi, super Paulo Coelho, mas ainda assim acho que a metáfora funciona), onde nós escolhemos nossas companhias.

E de novo, aproveitando o gancho do medo do meu filho e da ânsia de ir em frente do meu pai, quero terminar esse texto pra falar da Lucia, cujo blog faz aniversário e é um dos motivos pelos quais estou escrevendo aqui: diz Borges que todo encontro casual é marcado, e eu acredito (Lucia, fica quietinha aí, guarda o seu lado científico um pouco – se você quiser, chame isso de estatística; quanto a mim, chamo de serendipity); conheci a Lucia através do VNV, foi com ela que comecei a conversar na primeira reunião do grupo, e de certa forma, foi através dela que conheci muita gente na blogosfera, enfim, tenho sorte de tê-la encontrado. A Lucia (sagitariana da gema, como eu) também não teme o medo. Morou em trocentos lugares diferentes do mundo, enfrentou (e certamente continuará enfrentando) uma série de desafios. Desafios esses, inclusive, profissionais, porque além da pesquisa científica não deixar de ser uma viagem cujo ponto final adivinhamos mas não temos certeza, nada mais aventuresco do que ser cientista num século em que surge uma teoria conspiratória por dia – sempre criticando a ciência e insidiosamente pregando uma volta aos tempos dos curandeiros. Sim, a Lucia é uma daquelas pessoas que volta e meia têm que pegar no leme pra nos lembrar onde estamos e de onde viemos, e eventualmente, dizer pra onde o mundo irá.

Gosto de uma frase que ouvi da Maitê Proença:

“Corajoso não é o que não tem medo; corajoso é o que tem medo e mesmo assim pula.”

Então, nessa comemoração do aniversário do blog da Lucia, queria dar mes compliments a todos aqueles que não têm medo do medo e o enfrentam, seja de que forma for; praqueles que, como meu filho, acham divertido pegar várias “coisas” pra se chegar a um destino, porque tudo é conhecimento e experiência.

Pra Lucia, pro blog dela e todos aqueles que a acompanham, toda a felicidade do mundo.

Tudo de bom sempre (tm @luciamalla)



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