FIV: felinos ameaçados?

por: Lucia Malla Animais, Biomédicas, Ciência, Evolução, Molléculas da vida

Felinos sempre me intrigaram. Temos um exemplar da família em casa – bem mais domesticado, é verdade – mas não menos fascinante. Fascinante, aliás, é a palavra mais adequada para o mistério adaptativo que os felinos guardam em si e que me instigou a manter o assunto como um interesse paralelo relevante na minha longa lista de mallices.

Em meados de 2003 na universidade do Havaí, assisti a uma palestra sobre felinos selvagens portadores do vírus da imunodeficiência felina, chamado FIV, que pertence à mesma família do HIV, os lentivírus (lenti = lento, característica clássica do desenvolvimento da patologia imune que desencadeiam). O pesquisador chamava-se Stephen O’brien, e apresentou uma das palestras mais interessantes que já assisti na vida. Ironicamente, fiquei sabendo da palestra de última hora, e não tinha sequer um lápis para anotações ao entrar na sala. Mas a história que contou foi biologicamente tão marcante que lembro até hoje de várias frases ditas por ele durante a palestra: anotei tudo no meu caderno mental.

O FIV foi identificado pela primeira vez em 1986, na Califórnia, quando uma dona de um gato adoentado dizia que seu gato “tinha AIDS” – era ainda o início da epidemia em humanos, e os veterinários provavelmente despachavam a mulher de seus consultórios achando ser uma “neurótica sobre HIV” ou algo do gênero. O fato é que depois de muitas tentativas em vão de tratamento e muita insistência da dona, esse gato foi parar num laboratório da UCLA, em Los Angeles, e o pesquisador Niels Pedersen (hoje na UCDavis), que coincidentemente estudava SIV (o vírus da imunodeficiência dos símios), percebeu que o gato tinha sintomas típicos de um imunodeprimido mesmo; coletou seu sangue e testou de forma genérica para o vírus da imunodeficiência. O resultado positivo trouxe à luz a primeira detecção de FIV da história.

Assim que descoberto, houve um certo alvoroço na comunidade científica: será que os gatos poderiam desenvolver AIDS? E se poderiam, estariam condenados a morte? Será que o FIV poderia infectar humanos? Logo se descobriu que os gatos eram bastante tolerantes ao FIV, que ficava incólume no organismo do bichano por muito tempo. Em alguns casos, levava depois de um tempo a uma debilidade do sistema imune (AIDS felina), e consequentemente à morte, mas não em todos. E não há contaminação cruzada – ou seja, o gato não se contamina com HIV nem o homem se contamina com FIV.

Mas o que me chamou a atenção na palestra de O’Brien não foram seus comentários sobre gatos domesticados, e sim sobre a fantástica história evolutiva desse vírus em felinos selvagens pelo mundo. Quase 90% dos leões da África Ocidental, por exemplo, são portadores do FIV, e o vírus já se mostrou dono de uma capacidade recombinatória invejável nessa espécie. Virtualmente, todas as populações de felinos selvagens do planeta são FIV positivas, indicando que houve co-evolução entre essa família animal e o vírus. Caso contrário, os felinos teriam se extinguido, e fato é que a maior parte das espécies não desenvolve nunca uma patologia parecida com a AIDS, apesar da contaminação. (Há felinos que ficam doentes, mas são uma minoria, como o gato doméstico.)

UPDATE de 2012: Esta idéia foi revisitada e parece que o FIV causa problemas sérios também entre os leões.

O’Brien tem amostras congeladas em seu laboratório de sangue e sêmen de 32 das 37 espécies de felinos selvagens existentes, e agora vem traçando uma interessante árvore evolutiva do grupo com o vírus – chega a hipotetizar que o novíssimo HIV seria um “neto” evolutivo do FIV, que convive com o hospedeiro há milênios. Muito se tem cientificamente a colher dessa pesquisa: a evolução do SIV, por exemplo, é de complicado estudo, já que coletar sangue de gorilas e chimpanzés ameaçadíssimos de extinção é praticamente impossível. Traçando-se um paralelo entre a evolução do FIV em populações de felinos e do SIV em símios (e parece que dá para fazer essa analogia pelo menos com algumas populações na África), pode-se bolar estratégias mais eficientes de conservação: onde é mais prioritário, quais populações são mais resistentes, etc. Fascinante união da genética evolutiva com a conservação animal.

Os estudos de O’Brien ainda pretendem responder muitas questões, como por que os gatos domésticos FIV positivos desenvolvem AIDS felina enquanto a maior parte dos felinos selvagens não. Ou como o FIV surgiu entre os gatos (O’Brien hipotetiza sem prova alguma ainda que o FIV pode ter vindo do BIV, o vírus da imunodeficiência bovino). Há muitas cenas animadoras nos próximos capítulos dessa novela natural tão intrigante, que eu acompanho de longe desde que assisti sua palestra em 2003.

Tudo de bom sempre.

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Para viajar mais sobre felinos e suas doenças:

– Há algum tempo saiu uma reportagem na Folha comentando que o homem estaria se adaptando ao HIV. Será que a história natural se repetirá com nosso grupo animal também? Vamos dar tempo ao tempo…

– Gatos são infelizmente afetados por gripe aviária como os humanos – taí um vírus que cruzou a barreira de espécies sem problemas. Mas gatos também são os piores invasores de um ecossistema. Rapidamente acabam com a população de pequenos mamíferos e pássaros. Ser ou não ser, eis a questão…

– Um post sobre chitas e sua contaminação por prions: como essa descoberta afeta a conservação desses animais.

– Sobre HIV, Carl Zimmer postou a tatuagem-cladograma dos subtipos de HIV. Em seu blog de tatuagens científicas, é claro.

– Boa parte do post foi escrito com base nesse excelente texto de 7 páginas, que eu aconselho a todos que queiram se aprofundar no tema.



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