Galera de Puerto Galera

por: Lucia Malla Amigos de viagem, Animais, Ásia, Filipinas, Ilhas, Mergulho, Viagens

Quando olhamos no mapa-mundi, as Filipinas parecem uma pontinha de nada na lateral esquerda do Oceano Pacífico. Mas é um país formado por cerca de 7,100 ilhas. Num cálculo imaginário grotesco, se cada ilha tivesse 1km de praia em volta (ou seja, 1 km de perímetro, o que é bem pouco), teriamos uma extensão costeira de 7,100 km – o que já é quase o tamanho da costa brasileira. Essa fractalização da costa obviamente aumenta o contato do filipino com o mar. Em muitos casos é melhor você ter um barquinho que um carro, pois o barco vai te facilitar muito mais na locomoção entre ilhas. Como se não bastasse o tamanho da costa, as Filipinas estão no que chamamos Centro de Biodiversidade Marinha (em inglês, marine hotspot) – não se preocupem com o termo, pois estou preparando um post bem detalhadinho sobre o assunto pro futuro próximo.

De qualquer forma, pra conhecimento do momento, as Filipinas estão na área mais biodiversa subaquática do planeta. Isso gera condições excelentes para… mergulhar! E foi isso que fizemos, em 4 ilhas diferentes: Mindoro (na cidade de Puerto Galera, especificamente), Verde, Negros Ocidental (na cidade de Dumaguete) e Apo – além de visitarmos a ilha de Luzon, onde fica Manila, mas lá não aproveitamos a praia. Pra quem tem mais de 7,100 ilhas pra escolher, pode ter certeza que a tarefa não é nada fácil, e deixamos sempre excelentes opções de fora. Coisas da vida viajante.

Vale lembrar também que as Filipinas servem de exemplo nas salas de aula de ecologia marinha pra todo tipo de prática predatória possível: eles pescavam (e a maioria pesca até hoje assim) usando dinamites, armadilhas de peixe, jogando cianureto no recife de coral, para sufocar os peixes e fazê-los subir à superfície. Práticas pra lá de condenadas, que colaboraram para o desaparecimento de muitas espécies do local. Entretanto, Puerto Galera, cujos recifes de corais foram designados pela UNESCO em 1977 santuário marinho ou reserva de biosfera, viu crescer uma fértil indústria de turismo, principalmente de mergulho. Com os recifes preservados, mais peixes passaram a habitar a região, e a pesca sustentada hoje é realidade. A população viu no bolso que preservar dá lucro, em diversos lados. Embora seja um exemplo quase único nas Filipinas, ele existe e já é um bom começo na história de conservação dos mares. Vale lutar para que se espalhe.

A chegada em Puerto Galera já foi uma aventura em si. Após 3 horas de carro de Manila até um vilarejo, pega-se um barco filipino (a “bangka”) por uma hora que nos leva até a praia principal de Puerto Galera. Isso tudo de madrugada, pois nosso vôo havia chegado quase meia-noite. Ao chegar na praia, precisávamos ir até o hotel em que ficaríamos, o Atlantis Dive Resort – que obviamente pelas leis de Murphy era um dos mais distantes do local de desembarque. A maior parte da cidadezinha não tem ruas, e sim ruelas para pedestres, naquela típica confusão e improviso filipinos, então as malas e equipamentos de mergulho tiveram que ser carregados por um bom trecho. Como chegamos no fim da night, os últimos seres da noite bêbados e suas respectivas prostitutas predominavam na cena. Galera em ação no puerto.

Ruazinha típica em Puerto Galera.

Andando de jeepney, o transporte terrestre filipino por excelência.

Dia seguinte, começamos nossa maratona embaixo d’água. 3 a 5 mergulhos por dia (incluindo noturnos para ver os outros “seres da noite” que não se embebedam nos bares), cada um num lugar mais bonito – ô, vida difícil, sô… A baía de Sabang, onde ficamos, é menor que a praia do Flamengo, no Rio, mas inacreditavelmente a gente encontra lá mais variedade de espécies de tudo (peixes, corais moles e duros, caranguejos, esponjas, e por aí vai…) do que no Brasil inteiro. Simplesmente incrível. Além disso, a operadora com que fazíamos nossos mergulhos era certificada pela National Geographic e um centro de excelência para mergulhos técnicos de profundidade: veio de Puerto Galera o recorde mundial confirmado de descida com equipamento autônomo, inacreditáveis 308m. Os que mergulham sabem o quanto a pressão a 30m já pode causar dores de cabeça, imagine a 308m, feitos por John Bennett… A superação do ser humano onde o fundo é o limite.

Mas, para os mergulhadores reles mortais como nós, 30m é o limite, porque abaixo disso também muito da diversidade da vida esvaece. E nossa rotina de mergulhos foi então estabelecida, revirando os mares próximos a modestas profundidades cheias de vida. Fomos à Caverna dos Tubarões (a 27m de profundidade) porque obviamente eu não queria perder a chance de visitar os meus amigos prediletos do mar, que lá descansam calmamente. Milhões de peixes pra todos os lados, cada recife de coral mais colorido que o outro, milhares de pequenos invertebrados lindos e cheios de cores – os meus prediletos são os nudibrânquios, pequenas lesminhas de cerca de 5 cm em média, cujo nome remete à sua ordem taxonômica (Nudibranchia = brânquias expostas, seu aparelho respiratório não é protegido como nos peixes), e que têm um colorido peculiar com padrões pra lá de viajantes. Um deles, o “dançarino espanhol”, que vimos num mergulho noturno, me emocionou tanto que eu quase chorei embaixo d’água. Ele era vermelho róseo, de anteninhas vermelhas escuras, com uns 20cm, mas super-macio na pele, e tinha um camarãozinhozinhozinho caminhando nas suas brânquias! Uma dessas cenas pra nunca mais você esquecer na vida, pelo menos para quem é biólogo e curte o mar como eu.

Detalhe das brânquias do “dançarino espanhol” com o camarão de carona.

Os tubarões-galha-branca na entrada de sua caverninha.

Em terra, um certo nervosismo começou a se estabelecer: queríamos assistir ao jogo Brasil X Argentina, final da Copa das Confederações – principalmente porque um dos divemasters era argentino, e obviamente a histórica rivalidade foi trazida à tona da maneira mais leve e jovial possível. “Mas como não passa na TV???” Pois bem, aparentemente as Filipinas não têm muita paixão por futebol, e nos canais de esporte, nos intervalos entre-mergulhos, a única coisa que víamos era o torneio de Wimbledon. Em dado momento, até campeonato mundial de bilhar estava passando, e nada dos gols do Adriano!! Isso nos deixou frustrados, e até agora estamos na esperança (é a última que morre, afinal) de ver esses gols pela TV. E por favor, que ninguém me venha falar que foi o melhor jogo contra a Argentina de todos os tempos, que isso eu já sei, ok? 🙂

(Parênteses: Esse divemaster argentino, aliás, era perseguido em alguns mergulhos por um peixe-cangulo razoavelmente grande e agressivo na defesa de sua fêmea, e atacava mordendo as nadadeiras azuis do moço. O mais engraçado é que estávamos embaixo d’água num grande grupo, mas o cangulo só ia em cima do argentino! E nós embaixo d’água parados, vendo aquele espetáculo de humor, rolando de rir… É claro que isso foi motivo de muitas brincadeiras em terra também.)

Praia pacata na Ilha Verde.

O paredão de corais coloridos no Pináculo da Ilha Verde, e eu embasbacada com aquela diversidade de vida! Os corais pareciam formar uma avenida florida de todas as cores, belíssimo!

Em um dos dias, fizemos uma pequena viagem à vizinha ilha Verde, para mergulhar no Pináculo, um paredão de coral dos mais coloridos que já vi. Sem brincadeira, um dos corais que vi tinha textura parecida a um azulejo roxo – nunca nem imaginei que existisse algo assim. Na ida para Verde, golfinhos acompanhando nossa bangka. No barco, além de tanques e apetrechos de mergulho, as cozinheiras do nosso piquenique. Prepararam pancits, saladas e galinha assada, no melhor estilo “farofa na praia”. Que saudade da bagunça! Como os filipinos são muito simpáticos, tudo era motivo de sorrisos largos.

No último dia em Puerto Galera, impossibilitados de mergulhar à tarde porque íamos voar no dia seguinte (para quem não sabe, isso é uma norma variável: em geral não se mergulha 24h antes de entrar num avião, dependendo do quanto você mergulhou antes), resolvemos passear por Puerto Galera. Pegamos um jeepney, meio de transporte típico filipino e fomos até o topo de uma montanha apreciar a vista. A viagem até lá já foi reveladora: vimos cenas filipinas das mais interessantes. A começar pelo jeepney, que é um antigo ônibus militar americano que, após ter sido jogado fora pelos ianques, foi parar no sudeste asiático. Cada jeepney reflete a personalidade de seu dono, e os designs e desenhos são os mais engraçados possíveis. Passamos também por uma fazenda de criação de galos de briga, paramos num píer lotado de crianças, e demos muitas risadas quando o jeepney quase atolou numa ladeira de barro – sim, as estradas nas Filipinas são em boa parte de terra. Em férias, até os possíveis problemas são diversão.

Seres da noite: esse nudibrânquio colorido no mergulho noturno.

Um dos locais onde a outra galera da noite encontra-se, o bar flutuante de Puerto Galera!

Despedir-se de Puerto Galera, confesso, doeu no coração. Gostei muito dos mergulhos, das pessoas com quem interagimos, dos passeios de barco, da vida marinha. Mas foi chegada a hora de partir, e continuamos na estrada, rumo à Dumaguete – a história de lá fica pra depois…

Tudo de bom sempre.



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