Sou uma apaixonada pela cultura das ilhas do Pacífico. Não conheço muito, e talvez venha daí o meu fascínio, mas o pouco que conheço coletado no meu 1 ano e meio morando no Hawai’i, valeu para aprender muito e me apaixonar de verdade.
Assim que cheguei em Honolulu em maio/2002 e descobri que tinha direito a fazer uma disciplina por semestre na Universidade totalmente de graça, não pensei duas vezes: matriculei-me num curso de língua havaiana. A maioria das pessoas a quem eu comentava isso, perguntavam a mesma coisa: “pra quê? Havaiano é uma língua que ninguém mais no mundo fala, você vai colocar isso no seu currículo? Por que não aproveita a oportunidade e faz aula de uma disciplina da sua área de interesse?” Sou teimosa e sigo minhas paixões. Embora apaixonada por ciência, eu já lidava com aquilo no meu trabalho. Tinha que aproveitar o Hawai’i de outra forma. Eu adoro estudar línguas, a diversidade fonética e sonora dos habitantes desse planetinha azul. Então, foi batata: essa era A oportunidade de aprender uma língua de características tão exóticas.
O havaiano é o menor alfabeto do mundo: tem 13 letras sendo uma delas o ‘okina, representado pela apóstrofe, que para nós é apenas uma sinalização qualquer. Pra eles, não, é fonética, e está presente acima de tudo, na palavra Hawai’i – quer melhor aceitação do apóstrofe como letra que essa? Havaiano também é uma língua vocálica: tem encontros vocálicos de deixar qualquer um maluco – um dos bairros da ilha de Oahu chama-se Aiea.
Voltando à aula. O semestre começou, e para minha extrema surpresa, a classe em que eu estava matriculada era composta na maioria por estudantes havaianos (kama’ainas), ou seja, poucos americanos do continente efetivamente se interessavam em aprender. Além de mim, uma menina de Boston e outra do Texas. E só. O professor, um surfista renomado que nas horas vagas e sem ondas, fez mestrado em Havaiano. Mas isso não me desanimou, pelo contrário: era a minha oportunidade de ouro de interagir com pessoas que realmente VIVEM o Hawai’i.
Logo percebi que a disciplina era fácil para todos os locais, que obviamente haviam crescido ouvindo havaiano por todos os lados, e eu tive que na verdade estudar bastante para acompanhar o ritmo da turma. Mas muito mais que apenas a língua, o professor estava interessado em reintroduzir um pouco da cultura havaiana do passado na cabeça daquele monte de neo-havaianos. Afinal, o Hawai’i padece da perda de sua cultura para os pseudo-invasores americanos. Perfeito: eu ia aprender cultura havaiana também.
O professor no primeiro dia de aula havia dito que uma vez por semana (a aula era todo dia 7 às 8 da matina) não teríamos aula na sala, e sim num terreno (Lo’i) pertencente ao departamento de Estudos Havaianos onde construiríamos uma casa aos moldes havaianos. Como é que é? Eu fiquei meio cabreira com essa história de construção, mas topei o desafio e não tranquei matrícula. E todas as quartas-feiras, íamos todos pra esse terreno trabalhar na “casinha”: fazíamos separação da palha certa, políamos a madeira, assentávamos o terreno, etc. Sem discriminação alguma entre homens e mulheres. Ritmo de aloha e detalhe: utilizando ferramentas antigas havaianas. Nada de polir com lixa comprada no WalMart – o negócio era com pedra de lava mesmo. Eu, brasileiríssima, pensei: a casa só fica pronta daqui a uns 5 anos. E essa foi a primeira lição: todos iam ali determinados a trabalhar e chafurdar na lama para cumprir um objetivo, todos éramos uma família (‘ohana) e eu nunca havia presenciado tamanho sentimento de time e união. Primeira lição aprendida: os havaianos são uma imensa família.
Aos poucos, percebíamos que a casinha tomava forma, e o professor já traçava planos do que seria ali, ao lado daquela plantação de inhame (taro, a planta mais tradicional da culinária havaiana) – provavelmente um local para reunião entre os professores aos moldes havaianos tradicionais, todos sentados no chão. E aí a segunda lição veio. Embora até então estivéssemos trabalhando todos juntos, na hora da divisão de trabalho depois da casa pronta, os homens se reuniriam enquanto as mulheres fariam os leis. “Como é que é???” “Sim, homens não fazem leis, é a tradição. Homens não têm mãos delicadas, não sabem colocar a magia das flores de forma harmoniosa.”
Leis são aqueles colares de flores que ficaram famosos em cadernos de turismo, símbolos de um paraíso tropical. A idéia é você chega num lugar desses e ganha um colar de flores. Não é bem assim. É realmente muito agradável e bonito receber flores na sua chegada, e as agências de turismo fazem isso para os turistas de pacote, mas a idéia real por trás de cada lei é diferente. Tem o lei da guerra, o lei da mulher grávida, o lei da dança de agradecimento da colheita, o lei do homem forte, o lei de aniversário… e cada ilha havaiana tem também o seu lei específico, feito de flores diferentes. E os cheiros! Cada um mais delicioso que o outro. O lei de flor de gengibre era o meu predileto, branco e o cheiro ficava pela casa por vários dias, aliviando as tensões (?) do ambiente. E como para cada ocasião há um lei específico, as mulheres estavam sempre trabalhando duro, na antiga sociedade havaiana, cuidando da casa e fazendo os leis de todos da família. O lei é peça fundamental para qualquer um interessado em entender a cultura havaiana, e nos dias atuais, para os moradores das ilhas, continua preservado como uma identidade única, uma marca registrada do lugar deles. Exemplo? A foto que tenho no perfil deste blog exibe o lei de orquídeas, típico de turistas – eu tirei essa foto num luau comercial, para gringos. Se você aparece num bar com um lei de aniversário, qualquer havaiano legítimo imediatamente reconhece, e pode até vir a te oferecer um brinde “cortesia da casa”. Isso aconteceu comigo, e eu vi acontecendo várias vezes, nos lugares onde somente havaianos vão. O lei é o símbolo máximo de um objetivo conquistado, ou ainda a ser alcançado. É a realização de um sonho, é a concretização do sucesso, é a foma de desejar boa sorte. O lei é aloha. Portanto, muito mais significado existe por trás de cada um daqueles colares de flores do que sonha nossa vã filosofia…
Fiz a disciplina por 1 ano (passei pro nível 2!), e no final desse ano de trabalho às quartas, não é que a casinha estava pronta? De acordo com o professor, graças ao “aloha spirit” da turma. E eu aprendi a lição: mesmo fazendo muito pouco, todos nós somos importantes para o alcance de um objetivo comum. E se cada um faz a sua parte de maneira dedicada e feliz, o objetivo será alcançado. Já sabiam disso os antigos havaianos.
Maika’i mau i po’e. (Vocês podem imaginar o que isso significa…)
Minha turma de havaiano, em sala de aula (o professor Keoki de blusa azul na frente), e no terreno da Universidade, onde trabalhávamos na construção da casinha.
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PS.: A casinha, após tanto amor e carinho de construção, foi parcialmente destruída numa enchente enorme no Halloween do ano passado. Não preciso comentar minha tristeza. Mas ao mesmo tempo, sei que novas turmas de Havaiano 101 virão – e poderão desfrutar da mesma experiência maravilhosa que eu tive. Aloha para os novos construtores.
“The flowers may last only a few hours, but the memory of having a lei placed on your shoulders lasts forever.” (Marsha Heckman, uma fazedora de leis)
(Dedicado a todas as mulheres que fazem todos os tipos de “leis” diariamente, onde quer que seja no planeta…)