Quem somos eu?

por: Lucia Malla Biomédicas, Ciência, Evolução, Livros, Molléculas da vida

I am large, I contain multitudes.

Eu sou imenso, contenho multidões. (Walter Whitman)

A poética frase de Whitman é a inspiração inicial para o título do livro I contain multitudes”, onde nossa multidão individual é explorada. O título do livro – que pode ser traduzido para o português como Eu contenho multidões (ou multitudes) – já prepara o leitor para o desafio que lerá, expresso no título deste post com uma concordância verbal a princípio estranha. Mas… será estranha mesmo? Afinal, quem são as multidões do indivíduo?

I contain multitudes - Ed Yong - Resenha - Quem somos eu

Muito além da filosofia desta questão, o autor Ed Yong, jornalista científico dos mais gabaritados, usa a poética frase de Whitman como ponto de partida para analisar a multidão dos microorganismos que convivem com a gente no dia-a-dia. Micróbios estes que nos beneficiam e nos salvam diariamente, quando não estamos tão focados nos patogênicos. Que formam nosso microbioma, o conjunto de todos os microorganismos de um espaço finito. Em tempos de pandemia de coronavírus, quando estamos todos nos defendendo contra um – apenas um! – vírus, foi interessante ler mais sobre os microorganismos como um todo, muito além de vírus – ou seja, incluindo bactérias e fungos.

I am large, I contain multitudes

Dizemos “nosso” microbioma, ou seja, aquele que nos habita. E este fato – “que nos habita” – leva à viagem mais incrível deste livro. Ed Yong desafia o leitor: afinal, o que é o indivíduo? Há espaço para todo tipo de filosofia nesta questão. E logo na introdução do livro somos confrontados a refletir em quem “somos” eu:

“When Orson Welles said: “We’re born alone, we live alone, we die alone”, he was mistaken. Even when we are alone, we are never alone. We exist in symbiosis – a wonderful term that refers to different organisms living together. (…)

“Quando Orson Welles disse: “Nós nascemos sozinhos, vivemos sozinhos, morremos sozinhos”, ele estava errado. Mesmo quando estamos sozinhos, nós nunca estamos sozinhos. Existimos em simbiose – um termo maravilhoso que se refere a organismos diferentes vivendo juntos. (…)

When we look at beetles and elephants, sea urchins and earthworms, parents and friends, we see individuals, working their way through life as a bunch of cells in a single body, driven by a single brain, and operating a single genome. This is a pleasant fiction. In fact, we are legion, each and every one of us. Always a “we” and never a “me”. Forget Orson Welles, and heed Walt Whitman: “I am large, I contain multitudes“.

Quando olhamos para besouros e elefantes, ouriços-do-mar e vermes, pais e amigos, nós vemos indivíduos, vivendo como um monte de células em um corpo único, levados por um único cérebro, e operando um único genoma. Isto é uma ficção engraçadinha. Porque na realidade, nós somos uma legião, cada um de nós. Sempre um “nós” e nunca um “eu”. Esqueça Orson Welles e guarde Walt Whitman: “Eu sou imenso, contenho multidões.”

Nosso microbioma

Fato é que nunca estamos sozinhos. Nosso indivíduo biológico inclui muitos outros indivíduos biológicos, que formam nosso microbioma. Dentro do nosso microbioma, há ainda subdivisões, como por exemplo o microbioma do trato intestinal e o microbioma do trato respiratório. Cada microbioma forma um ecossistema dinâmico, cumprindo variadas funções, que vão de mediação da nossa resposta imunológica ao metabolismo mais eficiente de nutrientes que não conseguimos normalmente metabolizar, como fibras.

Impressionantemente, nosso microbioma intestinal pesa ~4 kg, ou seja, é mais pesado que o nosso cérebro, que pesa em média 1.3 kg. Se só peso fosse documento, a importância do microbioma já estaria escancarada aí. Mas é claro, o microbioma vale muito mais que seu peso. São trilhões de células, que contribuem para que o microbioma tenha pelo menos duas vezes mais genes que o nosso próprio genoma. E a cada dia que passa, aumenta o número de funções essenciais descobertas para nossa sobrevivência que dependem do bom funcionamento do microbioma que habita em nós.

O microbioma chegou primeiro

O livro traz uma análise sistemática e extremamente inspiradora sobre o microbioma. Não só o humano, mas também outros microbiomas importantes, como do oceano, do solo, e até o da nossa casa. Enfim, o livro analisa todo microbioma que é parte crucial do nosso planeta e da nossa existência.

E faz sentido que o microbioma domine nossa vida. Afinal, os microorganismos estão no planeta há bilhões de anos. Apareceram muito antes de qualquer outro ser vivo multicelular. Mais: reinaram milhões de anos na superfície da Terra sozinhos, sem outros organismos multicelulares. As estratégias adaptativas que permitiram sua sobrevivência são dissecadas em I contain multitudes, mas não de forma maçante. Sempre com uma curiosidade fundamental ao cientista. E acima de tudo com bom humor – Ed Yong é conhecido por seu estilo irônico requintado de escrever. Diversos parágrafos que seriam indigestos se tornam palatáveis pelo brilho da escrita leve e fácil do autor.

Além disso, Ed Yong fez um trabalho de revisão bibliográfica inacreditável, apontando para trabalhos clássicos da microbiologia com a mesma empolgação com que destaca as últimas descobertas. Curiosamente, cita inúmeros pesquisadores do Havaí como pioneiros da pesquisa do microbioma, o que me surpreendeu. Não tinha me ligado, afinal, o quanto o Havaí está no “epicentro” de muitas descobertas básicas sobre o microbioma, muito antes até do conceito de microbioma existir.

Simbiose

Recife de coral saudável - sobre microbioma, simbiose e disbiose
Um recife de coral saudável foi o meu exemplo preferido para entender simbiose e disbiose no livro.

Dos conceitos envolvendo o microbioma discutidos em I contain multitudes, o que mais me empolgou foi o de simbiose e disbiose.

Simbiose é como a maioria dos microorganismos vive, em uma relação benéfica (ou no mínimo neutra) com seu hospedeiro e com outras espécies de microorganismos em seu ambiente. Entretanto, a simbiose do microbioma não é só de uma espécie individual de bactéria com outra espécie. A simbiose do microbioma se alarga à comunidade de bactérias e vírus que estão presentes em determinado ponto, criando uma teia de relações ecológicas complexa – e incrível. Formando um ecossistema.

Somos, portanto, um ecossistema.

E ser um indivíduo-ecossistema de relações complexas entre milhares de espécies nos ajuda a entender porque a maioria das soluções médicas usando o microbioma não foram bem-sucedidas (transplante de fezes para obesidade, por exemplo). Em suma, porque focam em uma ou poucas espécies, e não na visão de “ecossistema”, da interrelação entre todas as espécies – e das mesmas com aquele hospedeiro específico, ou seja, você. Para sanar diversos problemas médicos via microbioma, a gente precisaria de um transplante de ecossistema, e Ed Yong dedica vários capítulos a esta “ecologia médica” tão necessária.

Disbiose

Da simbiose dos microorganismos, Yong puxa o conceito de disbiose, que seria quando a relação simbiótica das diferentes espécies se desregula. Amei que Ed Yong exemplificou disbiose em um recife de coral, facilitando bastante o entendimento para mim. Afinal, em um recife de coral saudável habitam milhares (quiçá milhões…) de espécies de microorganismos. À medida que o recife vai sofrendo estresses – acidificação do oceano, poluição, aumento da temperatura do mar, etc. -, o microbioma vai se adaptando e tentando ser resiliente. Mas, com muitos tipos de estresse, cria-se um desequilíbrio dinâmico do recife, chegando a um estado patogênico de difícil reversão, em que prevalecem diferentes populações de bactérias e vírus. Ou seja, o ecosssitema entra em disbiose.

Ed Yong sugere pensar as doenças humanas como resultados de disbiose, ecossistemas inteiros em processo de decadência. Saúde seria quando a comunicação entre hospedeiro e microbioma é harmônica, e na doença, esta comunicação entra em parafuso. Entretanto, Yong deixa no ar o que seria causa ou consequência, e os estudos futuros provavelmente focarão em buscar relações causais para diferentes patologias humanas, veterinárias e de outros ecossistemas.

O novo normal

Simbiose e disbiose são apenas alguns dos conceitos que Ed Yong explora vinculado ao microbioma. Entretanto, o livro tem mais dezenas de outros insights sensacionais como este, cheios de ramificações práticas e filosóficas, que tornariam esta resenha infindável.

Mas, serei sucinta. Poucas vezes terminei um livro com a sensação de ter lido uma revolução radical na visão de indivíduo e de mundo. I contain multitudes me deu essa sensação. Mesmo sabendo um pouco sobre o microbioma, ainda assim minha forma e foco ao ver e tentar absorver o mundo se enriqueceu radicalmente depois de lê-lo. Não por acaso, o livro ganhou diversos prêmios e está na lista de recomendados de Bill Gates e George Lucas. Porque é uma viagem sem volta por um mundo que houve – e pelo mundo que virá.

Em meio a uma pandemia causada por um único microorganismo, quando muitos falam que passaremos a viver no futuro um “novo normal”, I contain multitudes, escrito em 2016, te obriga também a incluir – e repensar – o papel dos microorganismos neste “novo normal”. E este papel vai muito além de eliminá-los com uma simples vacina. I contain multitudes te vacina contra o velho conceito de indivíduo. E te permite abraçar e encarar um novo mundo, felizmente repleto de incontáveis microorganismos.

Tudo de bom sempre.

P.S.

  • Vale muito ver no YouTube a palestra de Ed Yong sobre o microbioma. É longa, explicadíssima e incrível. #ficadica



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