O incrível cidadão do mundo Ian

por: Lucia Malla Amigos de viagem, Faça a sua parte, Mallices

Todos têm um amigo como o Ian. Ou deveriam ter. Ou talvez a singularidade dessa pessoa seja tão forte que conhecê-lo pessoalmente, com toda sua história de vida, seja realmente um privilégio para poucos. – não é nada fácil entender as sutilezas de sua filosofia de vida como um incrível cidadão do mundo. Se é que alguém algum dia entenderá, além do próprio. Enfim, não interessa. O fato é que meu amigo Ian é das figuras mais interessantes do planeta, dessas que te ensinam várias boas lições com seus atos.

Ian é britânico, de uma cidadezinhazinhazinha no interior da Inglaterra que tem 600 habitantes. No mundinho do vilarejo em que mora, ele é famoso: “viaja o mundo”. Carpinteiro, é daqueles que aproveitam bem um momento de sorte no jogo da vida. Ainda muito jovem, comprou (com dinheiro de uma herança qualquer) uma casa caindo aos pedaços em sua cidadezinhazinha. Renovou-a por completo, revendeu por um preço muitas vezes maior, e com o lucro planejou sua primeira viagem: um rolê pelo Equador, Colômbia e Venezuela. Não me pergunte por quê ele queria visitar esses países. Coisas de sonhos pessoais, não se discute. Passou 6 meses nesta aventura.

Vislumbrou nesse negócio a realização dos seus sonhos. Ao voltar para sua cidade, comprou outra casa caindo aos pedaços, maior e com melhor potencial de lucros. Mesma coisa: renovou, revendeu. O dinheiro? Um pedaço pra viajar, sem dúvida. E assim foi.

Como conheci o incrível cidadão do mundo Ian

Conheci o Ian em 1997 no albergue da juventude de Nápoles, sul da Itália. Não tem jeito. Cidadãos do mundo se reconhecem mutuamente, e travam um laço de amizade silencioso forte. E me tornei rapidamente mais uma amiga dentre os tantos que ele faz mundo afora. Ambos estávamos em Nápoles mochilando: eu com Eurailpass de 2 meses, ele de bicicleta. Isso mesmo: ele estava andando pela Europa de bicicleta. Saiu da Inglaterra, atravessou o Chunnel na bike, e já estava em Nápoles, na estrada há uns 4 meses. Nessa viagem, foi até a Turquia. Sei disso porque recebi um cartão postal dele um tempo depois direto de Istambul.

No dia em que nos conhecemos, eu estava de partida na manhã seguinte para Roma. Passamos boa parte da noite no bar do albergue com uma galera, conversando e dando risadas. Ele foi o primeiro estrangeiro a me ensinar que o mundo exterior também tem os mesmos problemas do Brasil. Afinal, tudo era uma questão de perspectiva. Lembro-me de discutir por mais de uma hora sobre corrupção nos governos, e ele veementemente mostrando que na Europa era muito mais comum do que imaginávamos. Achei meio lunático na época, mas aceitei com toda diplomacia. Mal sabia eu o que a crise econômica de 2009 nos ensinaria… Tolinha. Depois de Nápoles, achei que nunca mais teria notícias dele. Afinal, amizades de albergue em geral duram pouco. Mundo gira.

Recebi o cartão postal da Turquia, e continuamos trocando correspondências a esmo, dos diferentes lugares em que íamos. Nesse meio-tempo, ele reformou uma mansão numa cidade vizinha a cidadezinhazinha dele, cujo trabalho em madeira que fizera me impressionou deveras. Mais uma vez, renovou-revendeu, pôs o pé na estrada. Dessa vez, Egito e norte da África.

A troca de postais e emails continuava.

O Ian no Havaí

Tempo passou, eu já estava morando no Havaí, quando recebo um email dele dizendo que seu próximo plano era um tour pela América do Norte, e como ele sabia que eu estava em Boston (!), se poderia ajudá-lo de alguma forma. Tive que responder que não morava mais em Boston, mas numa retribuição típica de quem sabe o que é mochilar, ofereci hospedagem durante sua visita ao Havaí. Ele não só aceitou, como arquitetou um esquema gigante para chegar até o meio do Pacífico passando pelo Grand Canyon e pelas Rochosas. Tudo de carona.

No Havaí, como boa anfitriã, separei mapas e dicas de lugares gratuitos ou mais legais de ir, saindo da rota Waikiki, que sabia que não lhe apetecia. Sugeri que fosse a Big Island ver os vulcões e fazer o “programa de um dia” mais louco do mundo: subir o Mauna Kea com neve, e duas horas depois, deitar nas areias quentinhas de praias paradisíacas sob sol escaldante. Esse choque térmico faz parte do ritual da diversidade havaiana.

Sugeri também que fosse à ilha de Kauai, cuja costa Na Pali tem alguns dos mais altos penhascos do mundo. Cenário de muitos filmes, é uma trilha pra lá de arriscada, que em nada parece com parques americanos. Afinal, aqui, cair do penhasco é bem simples. A Na Pali tem muitas milhas, geralmente percorridas em 2 ou 3 dias. Pois ele andou tudo em um dia. De volta a Oahu, no pique da caminhada, Ian deu a volta na Ilha inteira, em alguns dias. Mas sempre muito tranquilo, ciente da aventura de viajar sozinho.

Por onde andou o Ian?

Do Havaí, ele seguiu para o México e América Central. Como sempre, mandando por email toda a aventura detalhada para seu um milhão de amigos – ele os tem, feitos pelas estradas da vida. Seus emails sobre a viagem à Cuba e República Dominicana são os melhores relatos que já li sobre o assunto, com visões políticas e econômicas pra lá de interessantes. E voltou pra Inglaterra, onde sossegou por um tempo com mais uma casa para renovar. Nesse meio-tempo, é claro, sempre deu uns rolês pelas Ilhas próximas, pela Escócia, Irlanda, etc. Mas são viagens pequenas, de “fim-de-semana”, comparadas aos périplos que geralmente ambiciona.

Tempo passa, e recebo mais um relato dele por email. Do nada – pois achava que ele estava nesse período entre-viagens. Aí descobri que ele estava trabalhando como voluntário para serviços administrativos da “Medicins sans frontieres” no Burundi. Isso mesmo, no Burundi, África Central.

Parênteses

Hoje isso tem nome chique, “volunturismo”. Na época, era só querer conhecer o mundo e ajudar pessoas, ao mesmo tempo.) Disse no email que queria curtir a experiência como voluntário, algo que nunca tinha feito na vida, mas conhecendo os seres humanos que expressam “genes viajantes” em grau máximo, sabia que ele tinha ido atrás era de conhecer a África de perto. E mais uma vez seus relatos e fotos dizem muito mais que qualquer jornal. (Acho que eu deveria sugerir a ele começar um blog…

De bicicleta

Sua mensagem seguinte transcorria sobre o problema das fronteiras entre o Burundi e a Tanzânia e principalmente, com Ruanda. E sobre a situação crítica de saneamento básico para as pessoas nos vilarejos africanos que visitava – já ajudara a construir diversos poços e casas de alvenaria. Nessa viagem, fez de bicicleta a África da costa oeste à costa leste – do Índico ao Atlântico, na altura do paralelo da Namíbia.

Encontro com o Ian em Oxford

Um tempo depois, fui eu quem estava de passagem pela Inglaterra. Ian por coincidência estava lá, trabalhando na reforma de outra casa na sua cidadezinhazinha. Fez questão de me ciceronear por Oxford.

E quando falo ciceronear, é de verdade: o trem chegou em Oxford e fui recepcionada por um Ian com um mini-guia escrito à mão com todas as atrações mais interessantes que ele achava que não deveriam faltar para quem tem o “gene viajante”. Eu só tinha um dia em Oxford, então sua ajuda de insider foi fundamental – Oxford é seu quintal, conhece como a palma de sua mão. E caminhamos muito, por diversos colleges, visitamos o museu de História Natural em que Richard Dawkins leciona, embalados pelas histórias (e estórias…) de suas aventuras pela Rússia pré-Gorbachev – sim, ele, britânico, morou na antiga URSS, na época da famigerada Cortina de Ferro. Não me pergunte como conseguiu, mas conseguiu. E claro, rodou pelo leste europeu pré-Perestroika, sua primeira aventura viajante.

De bike pela África – de novo

Um ano mais tarde, eis que recebo um email dele novamente. De novo com o Médicos Sem Fronteiras, dessa vez no Chadeno auge da confusão política que por lá se instaurou. Passou um ano trabalhando numa vila em que ninguém sabia o que era google. Melhor reality check não existe para nossa vida, não?

Depois do Chade, claro que foi viajar de novo. Dessa vez, de bike de norte a sul da África: saiu do Chade e foi até a África do Sul. Mas não em qualquer bicicleta, que suas aventuras precisam ter um twist qualquer: comprou de 2a mão (ou 3a ou 4a, sei lá) uma daquelas bicicletas chinesas da época do Mao, pesadas que só. A bicicleta foi se desmantelando aos poucos durante o trajeto, mas ele chegou são e salvo na Cidade do Cabo.

Logo depois dessa aventura começou a demonstrar uma certa preocupação com o aquecimento global. Por isso, decidiu que dali pra frente evitaria viajar de avião ao máximo. O resultado? Foi de sua cidadezinhazinha na Inglaterra à Mongólia, passando pela China e incluindo Tibet, tudo por terra, de trem, carona, ônibus ou bike. Esteve no acampamento-base do Everest e pegou uma mega-nevasca por lá. Mas sobreviveu para contar a história – em fotos e afins.

Por que o Ian é um incrível cidadão do mundo

Tenho uma profunda admiração pelo meu amigo Ian, com suas experiências de viajante solitário e observador crítico das mazelas do mundo ao vivo e a cores. Um incrível cidadão do mundo m-e-s-m-o, que resolveu que faria de sua vida muito mais que apenas “passagem”. Que conheceria o mundo, ao seu jeito. Ele não é rico, monetariamente falando: ele traçou um plano de vida e se agarrou a ele. Determinado, sem dúvida. Mas ele é rico da maior riqueza que podemos ter: nossas experiências de vida que ajudam a mudar o mundo.

Não, não acho que viver assim é pra todo mundo, pelo contrário. Aliás, são poucos os que têm o desprendimento necessário e a capacidade de “se-virômetro” que ele tem. Afinal, ele passa perrengues também, e não são poucos, e geram histórias que vão do ridículo ao aterrorizador. Eu mesma, penaria muito e com certeza me estressaria mais que curtiria.

Lições para a vida viajante

Há diversas lições que tiro em coexistir neste planeta com uma pessoa como o Ian. A importância de ter uma casa. Porque ele roda o mundo, mas sempre volta pra sua cidadezinhazinha, onde conversa com todos da vizinhança e se abastece da energia para próximas aventuras. O quão é possível se viver sustentavelmente. Afinal, ele me disse uma vez que sua casa e seus hábitos geram apenas um saco de lixo por mês. Ele consegue (ou se força a) reaproveitar basicamente tudo que compra. Além disso, ele compra muito pouco hoje em dia. Que na estrada podemos mudar o mundo – um tijolo de cada vez.

Além da mais incrível das lições: o quão nossa vida é muito curta para pequenezas – desculpas, reclamações, invejinhas bestas. O Ian é um pequeno exemplo de como as pessoas têm potencial efetivo para realizar todos os sonhos, basta saber planejá-los com dedicação, vontade, perseverança e otimismo. Principalmente, como, com foco e determinação, podemos realmente conhecer o mundo, torná-lo melhor e além disso, curtir a vida.

Um brinde a todos os/as Ians out there, um incrível cidadão do mundo, e que nos ensinam diariamente que a vida é pra ser vivida. Pra retribuir, aos que precisam de esperança, sorrisos e audácia, o tanto que aprendemos a todo momento com ela.

Tudo de bom sempre.

O incrível cidadão do mundo Ian em Oxford - Inglaterra
Uma Malla com o incrível cidadão do mundo Ian em Oxford, Inglaterra, 2006.

P.S.

  • Ian envia um email todo ano à sua lista de um milhão de amigos (literalmente, pelo menos uns mil!), meio que relatando o que passou durante o ano. No último email, ele estava no Brasil, mais especificamente em São Paulo. Visitara a Antárctica num barco e ido de ônibus de Ushuaia até a Paulicéia – parando em inúmeros pontos pelo caminho. Queria chegar até a Venezuela pela costa, de ônibus/a pé/whatever. Mas estava achando o Brasil caro demais e talvez seu orçamento não aguentasse… Ainda estou na curiosidade para saber o que ele terminou fazendo. 


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