As discussões desse mês no Roda de Ciência versaram sobre a dificuldade em se comunicar a incerteza. Não só aos acadêmicos, mas principalmente ao público leigo, que, acostumados ao maniqueísmo do “preto ou branco”, não se sentem confortáveis com estatísticas e probabilidades que sejam diferentes e nos deixem em tons de cinza. As discussões foram excelentes e eu, aos 45 minutos do segundo tempo, deixo aqui minha humilde contribuição pessoal.
A mediana não é a mensagem
Na ciência, trabalhamos com hipóteses, que serão de 0 a 100% corretas, com todas as tonalidades de cinza no meio desses números. O melhor texto que conheço sobre o assunto – e uma bela lição de vida – é o famoso “The median isn’t the message”. Este texto conta que, em 1982. o paleontólogo e divulgador da ciência Stephen Jay Gould foi diagnosticado com um mesotelioma abdominal (um câncer raro). Ao invés de engolir a sentença de morte de 8 meses que a literatura médica lhe evidenciava, Gould resolveu entender a estatística por trás do estudo. Nas palavras dele:
“When I learned about the eight-month median, my first intellectual reaction was: fine, half the people will live longer; now what are my chances of being in that half. I read for a furious and nervous hour and concluded, with relief: damned good. I possessed every one of the characteristics conferring a probability of longer life: I was young; my disease had been recognized in a relatively early stage; I would receive the nation’s best medical treatment; I had the world to live for; I knew how to read the data properly and not despair.”
Gould viveu 20 anos mais depois do seu diagnóstico – ou seja, superou o valor da mediana em quase 30 vezes.
Veja bem, o fato dele ter vivido 30 vezes a mais que a literatura médica previa não significava que a tal literatura estava errada – porque a nossa percepção do mundo da ciência é probabilística, não certeira. Ele apenas soube interpretar tal dado da forma adequada, com as variáveis pertinentes, e enfrentar o problema sem querer se enganar com uma certeza inexistente. Ele preferiu apostar na incerteza estatística – e foi um vencedor.
Incerteza estatística
Infelizmente, a maior parte das pessoas não faz como Gould e olham para as estatísticas médicas da mesma forma maniqueísta que encaram o mundo ao redor. Veja por exemplo, o 5-year-survival (“sobrevivência em 5 anos”, ou 5YS), que é uma probabilidade calculada para diferentes patologias, principalmente câncer. Sua definição é:
“(…) 5 year survival means is that X% of patients were alive 5 years after they were diagnosed. It does not mean that these people lived for exactly 5 years and then died. It doesn’t mean they were all cured either. Some of them will be cured. Some will have already had a recurrence of their cancer, but still be alive. Some will get a recurrence after the 5 year period.”
Por exemplo, o 5YS de uma gripe deve ser muito próximo a 100%, já que é praticamente impossível que uma pessoa vá morrer de uma gripe 5 anos depois de pegá-la. Para cânceres agressivos, o valor do 5YS é crucial para se decidir que tratamento é mais aconselhável. O médico sabe disso. Mas é difícil para ele comunicar essa incerteza ao paciente, que obviamente quer uma resposta preto-no-branco: vou ou não morrer logo. Só que a atitude de um paciente com câncer é meio caminho andado para um tratamento mais eficaz. Então, o médico fica naquela situação estressante de indecisão sobre como comunicar a probabilidade de sobrevivência.
Lidando com incertezas
Nossas cabeças não foram educadas para lidar com incertezas. A maior parte das pessoas, aliás, se amedronta com elas – vem daí o comodismo generalizado (principalmente intelectual) que vemos. Eu, por outro lado, tento extrapolar a estatística para minha vida diária em sociedade, e abuso do cálculo de probabilidades. Não me assusto com a incerteza. Entendo que o mundo e os fenômenos ao nosso redor são um grande jogo de estatística, e se amanhã iremos à praia ou não, é porque haverá tempo bom.
Na análise direta, basta abrir a janela amanhã e olhar. Mas se quiser brincar com os dados, olhe a seção de meteorologia do dia anterior. Estará lá publicada uma probabilidade “x” de que vai fazer sol, calculada pelo meteorologista com base em variáveis pré-determinadas. A maior parte das pessoas prefere o método da janela, muito por medo do erro humano no cálculo.
A ciência e o modo como o mundo é organizado são. Simplesmente são. As nossas interpretações, entretanto, ao tentar traduzir esse “estado de ser” do mundo, geram as incertezas que nos circundam e nos desafiam a cada respirada. Lidar com elas faz parte da nossa natureza humana mais primordial. Ainda bem.
Tudo incerto sempre.
P.S.
- Até dia 19 de outubro, na Secretaria de Cultura e Turismo de São Sebastião (SP), estará em cartaz a exposição: “Oceano, vida escondida”, de 4 fotógrafos do Centro de Biologia Marinha da USP. Muitas fotos em microscopia de plâncton e afins, belíssimas. Se você estiver por perto de São Sebastião, não deixe de passar por lá. Eu queria ir…
- Tive o prazer de esbarrar (literalmente) com Stephen Jay Gould no Harvard Yard uma noite de 2001. E perdi a voz, nada falei, tamanha emoção de ver meu ídolo ali. Contei este mico aqui. Quando ele morreu, em 2002, o laboratório em que então eu trabalhava estudando a influência do hormônio tiroideano nas células do mesotelioma (o câncer de Gould) cobriu-se de luto. Meu ex-chefe perdera muito mais que um paciente: perdera um amigo.