No Havaí, há um ponto na ilha de Molokai que pratica isolamento social há pelo menos um século e meio. Afinal, em 1866, a Península de Kalaupapa foi designada pelo rei Kamehameha V como uma colônia de leprosos (ou leprosário). Era ali onde as pessoas que sofriam de hanseníase eram isoladas para viverem o resto de suas vidas, longe de todos.
O isolamento social ocorria porque a hanseníase (ou lepra) é uma doença infecciosa bacteriana bastante contagiosa pela via respiratória. Na época, a lepra deixava a pessoa incapacitada, com danos nos nervos, e poderia levar à morte. Não é mais o caso desde a década de 1940, quando os primeiros tratamentos começaram a ser usados com sucesso. Hoje, a terapia anti-lepra inclui um conjunto de antibióticos e a doença deixou de ser impeditiva ou letal, embora ainda existam cerca de 209.000 casos ativos no mundo.
Por que um leprosário em Kalaupapa
Como estamos aprendendo com o coronavírus, a melhor maneira de evitar o contágio de uma doença infecciosa ainda sem cura é através do distanciamento e do isolamento social. Até o século XIX, a única estratégia efetiva para evitar o contágio pela bactéria da lepra era o isolamento social. Foi daí então que nasceram os leprosários, as colônias onde pessoas com lepra se isolavam e viviam.
E, no Havaí do século XIX, Kalaupapa, uma colônia de pescadores do município de Kalawao, era (ou melhor, ainda é…) o lugar mais isolado das ilhas. Ideal, portanto, para se estabelecer uma colônia de leprosos. Um lugar inalcançável. Isto porque a península de Kalaupapa está embarreirada em ambos os lados por uma cadeia de penhascos que é a segunda mais alta e íngreme do planeta. São 610 metros verticalizados, o que torna praticamente impossível a qualquer pessoa chegar ali por via terrestre. Os desbravadores da saúde, entretanto, abriram uma trilha de cavalo escorregadia e perigosíssima cruzando o penhasco, e era por ali que parte dos víveres que abasteciam Kalaupapa chegavam.
Circundando a península, está o oceano Pacífico. Que ali, naquele costão virado pro norte, está quase sempre revolto, com ondas apavorantes. As correntes são incessantes, o que dificulta bastante também a chegada por via marinha. Há um píer em Kalaupapa, mas que funciona apenas no verão, quando o mar ameniza. Aliás, é por ali ainda hoje que uma balsa traz parte do abastecimento dos residentes restantes da península.
A história de Kalaupapa e o Padre Damião
No auge de seu funcionamento como leprosário, administrado ainda pelo Departamento de Saúde, Kalaupapa chegou a ter até 8.500 residentes, entre pacientes e funcionários da saúde. Havia também uma missão religiosa católica ativa, liderada pelo Padre Damião e pela Madre Marianne. Os religiosos estavam ali para cuidar dos leprosos. Mas ofereciam além da assistência médica, também um conforto espiritual necessário aos pacientes, para sempre condenados ao isolamento social.
Padre Damião chegou em Kalaupapa em 1873, e logo se tornou um líder da comunidade. Ajudou a construir uma escola, ruas e melhorou o hospital, além de ser muito ativo em prol dos leprosos. Sempre que possível, empoderava-os. Com isso, ainda quando vivo, Padre Damião recebeu do rei Kalakaua do Havaí uma medalha real. Mas não foi assim que Padre Damião entrou para a história.
Padre Damião contraiu lepra e faleceu ali em Molokai da doença que tanto cuidou, em 1889. Seu túmulo fica ao lado da igreja que construiu, no lado oeste da península de Kalaupapa. Entretanto, depois de sua morte, dois milagres foram creditados a Padre Damião, já no século XX. Com isso, após um longo processo no Vaticano, em 2009 Padre Damião foi canonizado pelo então Papa Benedito XV. Hoje, Padre Damião é Santo Damião.
(Sua canonização foi no ano que voltei a morar no Havaí. Lembro claramente da celebração enorme que foi feita em homenagem ao Padre Damião na época, aliás.)
O Parque Histórico Nacional de Kalaupapa em Molokai
Hoje, o leprosário de Kalaupapa não mais existe. Isto porque a doença não preocupa mais, e caso apareça, é tratada nos hospitais das ilhas. Há ainda residentes no vilarejo de Kalaupapa, que são principalmente descendentes dos antigos pacientes do leprosário. De acordo com o último censo, 122 pessoas chamam Kalaupapa em Molokai de “minha casa”.
Apesar do esvaziamento da área, a importância histórica da região é incontestável. Por isso, desde 1980, a península se transformou no Parque Histórico Nacional de Kalaupapa.
O pequeno vilarejo de Kalaupapa é a principal atração do local. Ali, ainda hoje, a gente vê as estruturas que existiam na época do leprosário e que garantiam uma certa auto-suficiência à comunidade. Há pequenas fazendas, casas, igrejas (católica e protestante), a escola, o hospital etc. Além do escritório de informações turísticas. Tudo mantido em ótimo estado de conservação – contudo vazio. A sensação que tive foi de uma cidade quase fantasma, com uma sensação de passado triste no ar.
Além do vilarejo, Kalaupapa também conta com um atrativo geológico incrível: a cratera de Kauhako. Situada no centro da península, há dentro da cratera um dos lagos mais profundos dos Estados Unidos, o Lago Kauhako, com 248 metros de profundidade. Existia vida neste lago. Mas em 2011 houve uma liberação de sulfeto natural que gerou uma camada azulada-esverdeada na superfície. Este evento eliminou todos os animais e plantas que ali viviam. Há trilhas mapeadas por todo o entorno da cratera. Entretanto, estas trilhas são restritas a pesquisadores e moradores da península.
O passeio de mula a Kalaupapa
Estive em Kalaupapa em fevereiro de 2018. A entrada no Parque é gratuita, mas as visitas são restritas a maiores de 16 anos. Isto porque o acesso ao Parque é dificílimo. Há duas empresas de turismo que oferecem este passeio por terra, além de um passeio aéreo. Nós fizemos a descida de mula com a Kekaula Tours, que cobra US$209,00 por pessoa.
ATENÇÃO: Houve um deslizamento de terra em 2018 na trilha dos penhascos de Kalaupapa. A trilha está, portanto, no momento interditada. O passeio de mula voltará assim que os consertos terminarem.
O passeio de mula a Kalaupapa leva o dia inteiro. Começamos bem cedinho, no estábulo da micro-cidade de Kualapuu. Ali, os guias escolhem a mula que mais se adequa a sua “personalidade” e é com ela que você passará o dia. O passeio não é recomendado a quem tem problemas de coluna ou grávidas, porque o terreno é muito acidentado, íngreme e a mula balança bastante. Além disso, não há nenhum posto médico na vila de Kalaupapa, e qualquer acidente que ocorra ali requererá um tempo longo para que o serviço de resgate chegue.
Trilha difícil
Dá para fazer a trilha por conta própria à pé, mas ela é considerada nível difícil. Se você se empolgar em fazê-la à pé, prepare-se para um desgaste físico daqueles com uma subida na volta muito excruciante. Pior, sem muita vegetação para se apoiar. Afinal, você está a maior parte do tempo entre a montanha e o penhasco.
A trilha é estreitinha, e tem momentos em que você fica praticamente em um ângulo de 45º subindo, de tão íngreme. São 26 curvas fechadas e uma mudança de altitude brutal. Na mula, você consegue percorrer esta trilha em 1 hora e meia. Vale lembrar que é necessário preparo físico pra aguentar os trancos.
A paisagem, entretanto, é espetacular. O azul profundo do mar ali embaixo, uma vegetação densa e nativa do seu lado, e o penhasco estonteante quando você olha pra cima. É de chorar de tão lindo.
Mirante de Kalawao
A trilha de descida termina em uma praia extensa, a praia de Awahua. Muito brava, com areia grossa. Mas linda, com um mar completamente intocado, onde focas-monge havaianas gostam de descansar. Um pouco mais adiante, deixamos as mulas no estábulo e visitamos a vila de Kalaupapa.
Mas é depois da visita à vila que achei o passeio mais interessante. O micro-ônibus cruza a península, e vemos então a cratera de Kauhako ao longe.
Depois dessa parada, o próximo ponto é a Igreja de Santa Filomena, onde fica o túmulo do Padre Damião. A igreja é pequena e simpática.
A próxima parada é a mais espetacular possível, no Mirante de Kalawao. Ali estamos na extremidade oeste da península de Kalaupapa, e a vista infinita dos penhascos monumentais e da Ilha de Okala é de estontear qualquer um. Há um vale minúsculo, com uma praia completamente cercada de montanhas, que te dá a plena sensação de lugar remoto mesmo.
No passeio guiado, é ali no Mirante de Kalawao que almoçamos. Já era bem tarde. A espetacular vista dos penhascos de Molokai tornava este um dos almoços mais especiais do Havaí.
A volta a um passado do Havaí
O caminho de volta é o mesmo da vinda, pela trilha íngreme do penhasco. Na mula, a subida é mais rápida, pois o animal não está o tempo todo tentando se equilibrar como na descida. Praticamente troteia. Mas este é o mesmo trajeto que fizeram tantos desbravadores no século XIX. A sensação que temos, aliás, é exatamente esta, de reviver o passado como ele foi.
Kalaupapa inteira é uma volta ao passado. Um recanto remoto do Havaí, onde a dificuldade de acesso gerou um passado atormentado, culturalmente renegado, socialmente isolado, mas tão revelador. Principalmente interessante quando comparado ao isolamento social que vivemos hoje em dia, em tempos de pandemia, mas cheio de conexões virtuais.
Além disso, a beleza natural intacta de Kalaupapa em Molokai é das mais preciosas que você verá no Havaí todo. Um ponto de visitação raro, mas imperdível.
Tudo de bom sempre.
P.S.
- Caso você não visite Kalaupapa, há entretanto uma conexão que pode ser feita com esta história durante sua visita ao Havaí. No Parque do Kewalo, em Honolulu, há uma estátua da Madre Marianne. Ela que ajudou Padre Damião no leprosário de Kalaupapa.
- Profissionais médicos, correios e parte do abastecimento aos atuais residentes de Kalaupapa chegam hoje ali de aviãozinho monomotor. Uma pequena pista de pouso existe na ponta da península, operando apenas com vôos fretados.