Ontem tive a oportunidade de assistir na TV ao documentário interessantíssimo “A State of Mind”, de 2004, que conta a história de duas pré-adolescentes norte-coreanas se preparando para os Mass Games, o maior e mais coordenado festival de ginástica rítmica do planeta na Coréia do Norte dos Kim. (Vídeos do último Mass Games, no ano passado, podem ser visto nesse post do blog do Dan Schoor. Ele também tem fotos da Coréia do Norte e relatos imperdíveis.)
Os Mass Games eram bastante comuns no bloco comunista dos tempos da guerra fria. Hoje, em tempos de eixo do mal, ocorrem apenas em Pyeongyang, na Coréia do Norte.
A psicologia do grupo
O documentário é emocionante. Embora mostre um pouco da propaganda/lavagem cerebral feita pelo governo norte-coreano para enfatizar o “poder do grupo”, não se deixa levar em excesso pela postura ocidental, e relata de forma realista os sentimentos das 2 meninas. Para elas, participar dos Mass Games e principalmente, ser vista pelo “Grande Líder” Kim Jong-il, é a realização de menina-moça que podem almejar. E no tocante à realização desse sonho, o documentário é eficiente.
Após o filme, a discussão/reflexão sobre o regime norte-coreano e a atual conjuntura da península coreana foi inevitável. Nós já visitamos a fronteira das 2 Coréias, conhecida como zona desmilitarizada (DMZ) em 2005. Além disso, moramos há quase 3 anos próximos a Seul. Vivemos essa cultura homogênea por todos os lados. E, junto dela, tentando juntar as peças desse quebra-cabeças complicado e aparentemente insolúvel que é o momento atual político. Em que o sonho de reunificação está se tornando um pesadelo.
Kim do Norte e Kim do Sul

A Coréia do Norte é hoje sem dúvida o país mais isolado economica e politicamente do planeta. No início de julho, o governo do Kim do Norte fez testes com mísseis supostamente direcionados ao Havaí, no mar do Japão. Os testes geraram um mal-estar gigantesco na comunidade internacional. Por conseguinte, a suspensão da ajuda sul-coreana aos irmãos Kim do norte.
A situação da Coréia do Sul, aliás, é delicadíssima. Doadora de arroz, fertilizantes e outros insumos ao Norte em troca de paz na península, após o lançamento dos mísseis norte-coreanos está vivendo uma reviravolta no governo central por causa de sua política com a Coréia do Norte. O governo atual do Sul vem sendo acusado de ser muito “benevolente” com o Norte. Além disso, boa parte do Parlamento vem pedindo uma política mais linha-dura por parte do Sul. Mas, se as coisas se enrijecerem mais, a Coréia do Norte pode retaliar. E como será essa retaliação é a incógnita da hora.
Some-se a isso que os mísseis caíram próximos ao Japão, inimigo histórico número 1 dos coreanos (e chineses) em geral. O Japão, assim que soube dos testes, começou a pressionar a ONU para sanções imediatas – que a Rússia e a China pediram para serem reconsideradas. Mas o fato implícito desse imbroglio é: o Japão está irritado com tudo isso. E pode muito bem atacar preventivamente Pyeongyang, à la Doutrina Bush num futuro mais próximo que o desejado.
A parcela americana
Claro, tem a (enorme) fatia americana nessa confusão toda. Com parte considerável de soldados estacionados na Coréia do Sul, reminiscentes ainda do armistício da Guerra da Coréia na década de 50, a presença dos EUA na península é a maior certeza que a Coréia do Sul possui de que o Norte não atacará Seul tão cedo. Porque se atacar, os EUA retrucam de forma feroz. E o Kim do Norte sabe que, embora o exército americano seja menor que o dele, as armas americanas são muito mais poderosas e eficientes na destruição. Mas existe o outro lado da moeda. O sentimento anti-americano, principalmente depois da invasão do Iraque, domina a população coreana, que está constantemente protestando em frente à embaixada americana em Seul.
Enquanto os governos brincam de War num tabuleiro real, parecem sinceramente esquecer que no meio dessa salada indigesta há pessoas comuns. Pessoas que de certa forma vivem drasticamente a real consequência das decisões políticas discutidas em esferas superiores estéreis de individualismo humano, muitos desses separados de familiares pela guerra ainda pendente. Cidadãos que querem apenas o direito de serem felizes em sua caminhada.
Afinal, o que é felicidade?
Interessantemente, foi o conceito de felicidade que gerou maior reflexão após ver o documentário das garotas norte-coreanas. Afinal, o que é felicidade? Uma das definições é a busca daquilo que nos satisfaz. Isto gera uma busca eterna na nossa sociedade do consumo. Afinal, o que queremos hoje é o que desprezaremos amanhã, para querermos algo melhor ainda. A velha história do moço que vende uma Brasília para comprar um Palio, mas já sonhando com a BMW.
O que “A State of Mind” deixa de mais revelador ao mundo é essa ausência da ambição de felicidade individual nos norte-coreanos. Um efeito colateral da intensa lavagem cerebral praticada pelo governo. Esta valorização do “poder do grupo” não dá espaço ao sonho do indivíduo. A felicidade maior para o norte-coreano parece ser a perfeição do grupo. E se o grupo apresenta-se perfeitamente (como vemos de forma figurada nos Mass Games), a felicidade está conquistada. Plenitude alcançada.
Enquanto isso, os demais povos do mundo parecem viver nesse mar de frustrações. Em boa parte existentes por não alcançarmos nunca essa felicidade utópica. Afinal, sempre queremos mais. E mais. E melhor. Somos felizes nessa busca incessante pela felicidade?
A state of mind
Não defendo o regime de Pyeongyang, em hipótese alguma. O livre arbítrio e o direito de ir e vir para mim são bens vitais de sobrevivência de um ser humano social. Também sei que, por baixo da aparente união, igualdade e complacência, há muito sofrimento, fome e miséria na Coréia do Norte. O que para mim torna mais insano ainda o investimento maciço do Kim do Norte em militarismo.
Quero acreditar que a queda do regime comunista norte-coreano é uma questão de tempo. Que ocorrerá por vias diplomáticas ou pelo desmantelamento gradual, como vem acontecendo com a China. Entretanto, não deixa de ser curioso que no final das contas, com sua vida restrita, fechada e sem informações, os norte-coreanos estejam tão conformados com sua situação que se dizem… felizes. O oposto do que o resto do mundo parece viver.
Felicidade é mesmo “a state of mind”, não?
Tudo de bom sempre.