por:
Lucia Malla
Animais, Ecologia & meio ambiente, Evolução, Geociências, Ilhas, Mergulho, Micronésia, Palau
Publicado
18/01/2006
*Lucy in the lake with jellyfishes. In Palau.
“Picture yourself in a boat on a lake with tangerine trees and marmelade skies…”
Surrealismo existe.
Um recanto onde todo o lisergismo da mãe-natureza floresce sob a forma fantástica de lago. O Lago de Águas-Vivas – ou Jellyfish Lake, em inglês.
“Somebody calls you, you answer quiet slowly: a girl with kaleidoscope eyes!”
A história do surgimento do lago é muito interessante. Um pedaço do mar, que com a movimentação de placas tectônicas, erosão e fenômenos geológicos adjacentes por alguns milhões de anos, ficou então isolado no interior de uma das ilhas no que hoje chamamos de República de Palau. Um lago de água salgada, alimentado afinal por infiltração da água do mar através das rochas. Com um paredão de rochas como barreira, nenhum animal grande portanto conseguiu chegar no lago, apenas os microscópicos e as larvas vinham com a infiltração. Inalcançável aos grandes, era, certamente, alegria dos pequenos. Algum plâncton entrou, além das larvas de Mastigias, uma espécie de água-viva. Os demais invertebrados “curiosos” aos poucos foram desaparecendo, devido a pobreza nutricional do lago, enfim. Começou então…
O reinado das águas-vivas
“Jellyfish flowers of yellow and pink, towering over your head…”
Inicialmente, as água-vivas ali existentes eram como as que encontramos pelos mares afora, com tentáculos cheios de nematocistos – as células que liberam as toxinas que irritam a nossa pele – para queimar e afastar qualquer bicho fariseu que quisesse se “aprochegar” mais. Entretanto, o tempo, esse inevitável parceiro do processo evolutivo, foi passando, e a água-viva, retida naquele lago isolado de água salgada com quase nenhum outro animal, já não contava com predadores naturais. Não precisava se defender, afinal. Nematocistos não eram mais “necessários”, certamente um gasto energético. Sem pressão seletiva suficiente para se manter, com o tempo foram, então, desaparecendo da população.
Evolução. Isso mesmo: as águas-vivas deixaram de queimar ao simples toque. Precisavam concentrar energias na luta perante novos desafios daquele ambiente, como por exemplo alimentar-se.
“Look for the girl with the sun in her eyes and she’s gone…”
Mas de que vivem as versáteis águas-vivas do Jellyfish Lake?
Na falta de alimento propício, as águas-vivas associaram-se a algas zooxantelas. O mesmo tipo que estão associadas a corais, aliás. As zooxantelas fazem fotossíntese, produzem seu próprio alimento. E a água-viva, fornecedora da “carona” em direção ao sol para as algas, passou então a produzir uma enzima que permitia aproveitar o alimento que a alga fotossintetizava. Uma relação mutualística que deu certo. Hoje, as águas-vivas passam o dia próximas à superfície, fornecendo sol para suas algas internas. Durante a noite, descem às profundezas do lago, onde o ambiente anaeróbico rico em nitrogênio fornece os nutrientes básicos para a fotossíntese das algas que alimentará as águas-vivas. As duas saem lucrando portanto no final.
“Lucy in the lake with jellyfishes!“
O Jellyfish Lake de Palau é uma das atrações marinhas mais bizarras do planeta, além de ser das mais psicodélicas também. Para chegar no lago, isolado do mar, sobe-se um pequeno monte, trilha desenhada para turistas. E se desce, então. E se vai ao encontro da água salgada do mar distante, ali portanto concentrada.
“Follow her down to a hill by a boarder where japanese people eat marshmellow pies…”
Quando entrei no Jellyfish Lake, confesso que não acreditei que algo de “anormal” existisse. Ali, na beirinha do lago, não havia nenhuma novidade, a não ser o fato de ser salgado e lotado de turistas flutuando. Bastou dar meia dúzia de braçadas para começar a perceber o delírio viajante do local. À medida que chegávamos mais pro centro do lago, um número incontável de águas-vivas aparecia. E elas não tinham pudor algum em encostar em você. E de repente, tudo que eu sentia em volta de mim era aquela pasta gelatinosa vinda de todas as direções. Comecei a ficar com receio de quebrar alguma com uma braçada ou pernada. Passei então a ser mais delicada com os movimentos. Mas eram muitas! Milhares e milhares de águas-vivas me engolindo.
“Everyone smiles as you drift past the jellyfishes that grow so incredibly high…”
Lucia no lago com as águas-vivas
Comecei então a achar que estava dentro de um filme do Buñuel ou de uma tela de Dalí. A água não era tão clara, e sim verde escura, com aqueles múltiplos “pontos” esbranquiçados, de todos os tamanhos, movimentando-se, pulsando em direção à superfície, como numa real viagem na maionese.
Apesar de evitá-las por princícios biológicos, não dava para deixar de encostar nelas. Desencanei por completo, e comecei a senti-las na mão, perceber aquela textura de gelatina. Mexer nos tentáculos, até então um movimento proibido com qualquer água-viva que se encontre pelo mundo. Minha curiosidade aguçou. E ali, dentro do lago, comecei portanto a analisar as águas-vivas mais e mais. Entretanto, o surrealismo era muito constante para permitir qualquer raciocínio lógico.
“Suddenly someone is there at the turnstyle: the girl with kaleidoscope eyes!”
Meu namorado tirava fotos sem parar. Eu delirava de emoção, me sentia enfim numa nave espacial cheia de alienígenas. Ambos em êxtase. E não podíamos nos mexer muito, para não machucar os animais. Estaríamos numa realidade paralela? Aquele lugar parecia não existir, afinal. Não, Lucia Malla, é verdade. O Jellyfish Lake existe. E é uma das preciosidades de Palau. Relíquia biológica do mundo, prova cabal da evolução, estudo ecológico de mutualismo, inspiração ideal para Magritte.
Pequena amostra de que muitas vezes os delírios nossos de cada dia podem ser tão naturais como estar com milhares de águas-vivas sem nematocistos nadando num lago de água salgada no meio do Pacífico.
“Lucy in the lake with jellyfishes.”
Tudo de surreal sempre.
P.S.
- Adaptação mallística livre e abusada da psicodélica música “Lucy in the sky with diamonds”, dos Beatles.
- De volta a nossa realidade, então. Existem outros 2 lagos em Palau com águas-vivas. Um deles, entretanto, sofreu mais duramente o fenômeno El Niño em 1998, e suas águas-vivas quase todas morreram em decorrência do aumento da temperatura da água.
- O aquecimento dos mares afetou mais uma vez o Lago das Águas-Vivas em 2016. Neste ano, primordialmente as águas-vivas desapareceram. Além disso, a quantidade de protetor solar na água aumentou muito, e os cientistas acreditam que este produto contribuiu para o desaparecimento das águas-vivas. Aos poucos, entretanto, elas foram voltando. Hoje estão lá, maravilha do mundo, afinal. Mas os passeios estão mais restritos, com menos pessoas permitidas por vez e o uso de protetor solar foi proibido.
- Outros posts de Palau aqui.
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