por:
Lucia Malla
Antigos, Biomédicas, Blogosfera & mídia social, Fotografia, Memes, listas & blogagens coletivas
Publicado
27/09/2005
Hoje é um dia de conscientização e discussão na nossa saudável blogosfera, e o tema da vez é a descriminalização do aborto. Uma ação combinada aberta a quem quiser participar, cujo objetivo é levantar este assunto de morte e vida que é um desses “nós na rede“. Principalmente levantar a opinião e a reflexão das pessoas que passeiam pela blogosfera. Vale a pena dar uma olhada com calma e atenção em cada um dos blogs que estão postando sobre o tema. A lista está gentilmente hospedada na Verbeat e atende pelo singelo nome de… “Nós na Rede“.
Quando me decidi a escrever sobre o tema, não sabia como poderia abordá-lo. E talvez o texto que vocês estão prestes a ler por aqui ainda não seja sequer razoável. Na realidade, acho a decisão de submeter-se a um aborto de fóro totalmente íntimo. O que se discute, portanto, é apenas a garantia do amparo do estado para que tal ato seja feito de forma segura e eficiente, com o mínimo de sofrimento humano e o máximo de dignidade.
Descriminalizar o aborto, basicamente
As razões que levam a pessoa a decidir por um aborto não são discutíveis nem cabíveis de discussão pelos legisladores. Afinal, são questões pessoais, muito íntimas, particulares. Ninguém tem condições de julgar ninguém por isso. Deve-se lutar portanto pelo amparo do estado no caso da decisão pelo procedimento de um cidadão.
Segundo o Medline HealthPlus (um dos sites mais confiáveis sobre medicina), o aborto é “um procedimento cirúrgico ou médico para terminar uma gravidez através da remoção do feto e sua placenta do interior do útero.” (Reparem que não se trata aqui do aborto espontâneo, ok? Porque esse a legislação não tem o que discutir.) O site cita também as 3 razões pelas quais a mulher pode (à luz da medicina, entenda-se) ter a sua gravidez terminada.
- a mulher não quer completar a gravidez (aborto eletivo);
- a saúde da mulher está de alguma forma em risco por causa da gravidez (aborto terapêutico);
- o feto apresenta uma anomalia grave ou um defeito irreparável (aborto de razões genéticas ou de má formação).
As formas de execução de um aborto variam de acordo com o estágio da gravidez. Quanto antes, menos invasivas, é claro. Se o aborto for requisitado até 49 dias após o último ciclo menstrual, a mulher pode pedir ao médico para se utilizar de pílulas bloqueadoras de progesterona (RU-486). Ou ainda pílulas de prostaglandinas, moléculas que induzem o útero a contrair-se em excesso, expelindo portanto o feto.
Após esse período, entretanto, é necessária a presença de um cirurgião, pois os métodos vão da curetagem simples a uma cirurgia de retirada. Um procedimento não muito simples que sem dúvida requer um aparato médico. Mas que é renegado a clínicas de décima categoria ou a agulhas de tricô pela terra brasilis afora por devaneios do mundo político – o desamparo da lei.
É mais cômodo simplesmente fechar o olho para essa realidade de morte e vida
Milhares de mulheres arriscando sua saúde todos os dias porque o estado, essa instituição etérea e distante, não as concede um direito de escolha sobre o próprio corpo físico delas. Reflexivo, sem dúvida.
E aí, sábado passado, enquanto eu pensava como escreveria algo decente sobre o aborto (e não as viagens na maionese que normalmente escrevo; afinal aborto é assunto muito sério), decidimos ir à exposição do Sebastião Salgado em Seul. Meu segundo fotógrafo predileto, o mestre mineiro do preto e branco. É o próprio Salgado quem diz em seu site:
“I hope that the person who visits my exhibitions, and the person who comes out, are not quite the same.”
Saí da galeria do Centro de Imprensa (onde a exposição acontecia) chocada, em lágrimas. De verdade, não era a mesma pessoa. Afinal, sou como Salvador Dalí: “Everything alters me, nothing changes me.” Sebastião Salgado é um fotógrafo fenomenal. Mais que isso, é um ser humano de coração compreensivo e benevolente, profundamente preocupado e engajado nas causas sociais da humanidade.
As fotos que tira expressam de forma crua uma realidade humana dolorida, impactante, trágica – e extremamente verdadeira. Salgado é um artista de quem o brasileiro deveria ter muito orgulho. É representante especial da UNICEF. É além disso um desses cidadãos do mundo de verdade, que viaja a uma terra desconhecida de forma simples. Que prefere viver a realidade do povo que fotografa para exercer com plenitude sua fotografia engajada. Um cidadão que faz a sua parte pela melhoria do mundo.
Possui um trabalho reconhecido nos 5 cantos do planeta como da mais alta relevância e poesia – tragédia poética, assim dizendo. O branco e preto das suas fotos torna-se o retrato maniqueísta da realidade de um mundo cruel, o conflito diário da vida com a morte, da luz com as trevas.
A benevolência severina
É dramático.
E de uma certa forma, ciente de sua essencial força criativa, Sebastião Salgado nos faz viajar com ele por terras áridas, esquecidas, povos em desespero, sofridos, conformados com a pobreza, o subdesenvolvimento, a miséria da alma. Povos tristes. Povos que sofrem por não terem o devido apoio governamental ou do sistema. Por serem dizimados por doenças. Por não terem a oportunidade de sequer discutir sobre questões básicas, como saneamento, educação, saúde, alimentação, aborto ou qualquer outra coisa, enjaulados que estão na luta pela sobrevivência diária mais animal possivel. Povos sem esperança da dignidade humana.
Povos que são abortados do básico direito de viver.
Povos que mostram muito bem o quão desesperadora pode ser a vida. É mais cômodo simplesmente fechar o olho para essa realidade.
Nas palavras de Salgado sobre as fotos na África:
“I was injured in my heart and my spirit. For me, it was terrible what I saw. I came away from this with incredible despair.”
It’s insanely true.
Outro lado desse cubo de morte e vida…
O mais recente trabalho de Sebastião Salgado chama-se “Genesis“, e tem como objetivo fotografar áreas do planeta que são talvez os últimos redutos pristinos e intocáveis, menos ameaçados pela interferência humana. O trabalho é uma espécie de luta pela esperança no futuro, como ele define.
Seu trabalho anterior, o “Exodus“, marcou-o deveras. Segundo suas palavras que reproduzi acima, deixou uma marca de descrença na bondade da humanidade muito grande. Para remover essa mancha (como eu, ele quer acreditar nas pessoas a qualquer custo…), planejou esse projeto de 8 anos pelo mundo. Onde fotografará o que ainda resta de belo na natureza.
E desde 2004, as fotos desse projeto belíssimo estão semanalmente aparecendo no Guardian inglês. Já esteve por 3 meses em Galápagos, passou um tempo nos vulcões da tríade Ruanda/Congo/Uganda, outro tanto de tempo com as baleias na Patagônia, e agora está na Antárctica. Suas fotografias do mundo animal são tão emocionantes quanto as humanas, dramáticas em sua esperança, e mais uma vez eu não contive as lágrimas. Sebastião Salgado é pura emoção, das mais profundas e belas que se pode imaginar num ser humano. E fica mais uma frase dele próprio narrando a experiência de encontrar-se com as baleias em seu hábitat natural. Como conclusão desse outro lado da moeda da vida.
“When you have them in front of you, you do feel the power of life.”
It’s insanely true.
Tudo de bom sempre.
P.S.
- Por questão de postura pessoal, não coloquei as fotos do Sebastião Salgado aqui. Deixo a vocês a magnânima experiência de admirá-las em cada um dos links acima citados.
- Esse post foi escrito em meados de agosto. A exposição do Sebastião Salgado em Seul saiu de cartaz no início de setembro.
- Para outra discussão do Nós na Rede: Independência e Corte.