Sangue. Esse era o vampiresco nome da suposta cidadezinha onde deveríamos fazer a conexão para chegarmos em Santo Amaro do Maranhão, reconhecidamente a melhor área para se ver os Lençóis Maranhenses. É de Sangue que partem as toyotas responsáveis pelo traslado aventuresco até o vilarejo – só esses pseudo-tratores aguentam as 2 horas necessárias na não-estrada alagada que conecta o povoado à civilização asfáltica.
Saímos de São Luís de manhã cedo num micro-ônibus cheio de turistas de um dia, e depois de duas horas de viagem, eu e André fomos despejados em Sangue, os únicos a descer ali no meio do nada. Eu pensava que o local seria pelo menos um entreposto com um pequeno comércio local, mas estava enganadíssima: Sangue é uma parada de uma única casa/boteco na estrada que liga São Luís a Barreirinhas, a “metrópole” dos Lençóis. Ao chegarmos, já perguntamos logo quando sairia a próxima toyota para Santo Amaro. “Ah, só às 5 e meia da tarde.” Eram 10 da manhã.
A desanimadora resposta não nos pegou de surpresa. Sabíamos que o transporte por aquelas bandas era complicado, e já prevíamos uma possível estadia de muitas horas ali. Dado isso, despejamos nossa bagagem na varanda da casa. Os moradores da residência obviamente estavam acostumados a viajantes perdidos, e logo ofereceram cadeiras e sorrisos para nós dois. Sentei na varanda e depois de meia dúzia de palavras trocadas, puxei um livro de paperback do George Simenon que levara para leitura descompromissada das horas vagas, e pus-me a ler. André abriu o laptop e começou a (tentar) trabalhar nas imagens acumuladas da Amazônia ao redor de inúmeras crianças que surgiam por todos os pontos da casa, encantadas que estavam com fotos de peixes e afins naquela “máquina mágica”.
Em Sangue: uma casa de varanda no meio da estrada. Abaixo, a toyota do leite, preparando para levar leite e viajantes para Santo Amaro.
As horas passavam, assim como uma infinidade de animais saíam da casa. Galinha, porco, pato, bode, cachorro, gato… todos pareciam conviver harmoniosamente debaixo daquele teto. O calor reinava. Os habitantes locais discutiam cotidianices na varanda da casa, sentados pelas muretas, assuntando a vida. Duas crianças molhadas andavam de bicicleta fazendo malabarismos e dando risadas de nós, turistas acidentais. Toda a cena tinha um quê de surrealismo que só a realidade do interior do Maranhão apresenta.
Eram 2 da tarde quando uma toyota encostou. Não era a “oficial”, de linha, e sim 3 rapazes aleatórios. Logo souberam pelo pessoal da casa que queríamos ir para Santo Amaro, e vieram me perguntar se queríamos ir com eles. “A que horas vocês saem?” A que o mocinho respondeu: “Daqui a uma hora mais ou menos”. Beleza, pensei. Chegaríamos um pouco mais cedo no destino.
Continuei com as agruras detetivescas de Maigret, até que encostou em Sangue um caminhão frigorífico dos grandes, com letras garrafais nas laterais: “Programa de Distribuição do Leite”. Dentro, milhares de litros de leite. Os mocinhos que nos levariam a Santo Amaro começaram a se movimentar, transferindo do caminhão para a caçamba da toyota uma infinidade de leite. Essa rotina acontece 3 vezes por semana, e são mais de 1000 litros distribuídos apenas por aquela toyota. A operação de transferência durou cerca de 40 minutos. Nesse meio-tempo, mais 2 viajantes foram despejados ali em Sangue, ambos vindos de Barreirinhas, ambos querendo chegar em Santo Amaro. Comentamos sobre a toyota que estava sendo carregada de leite, e o motorista Nêuton logo falou que apenas mais um caberia no carro – já que a caçamba estava ocupada por leite. Começou então o processo de colocar nossas bagagens em cima da toyota, e nós mais um japaulistano divertido iniciamos a aventuresca travessia de Sangue até Santo Amaro numa toyota de distribuição de leite.
A toyota parava em cada vilarejo de pau-a-pique. Uma casa com geladeira era privilegiada com mais litros de leite, já que ela provavelmente serviria como redistribuidor local às outras casas da vila, numa entrega porta-a-porta. Quando a toyota chegava, as pessoas apareciam com bacias, baldes, sacolas, etc. para coletar seus litros de leite. Na maioria das vezes, crianças, mas em certo momento um senhor com pinta de micro-coronel local veio com seu chapéu, seu rifle e um brio capenga. Ao mesmo tempo que eu percebia que aquele leite era provavelmente a única fonte protéica que aquelas crianças teriam – e é possível que o programa tenha melhorado os índices de mortalidade infantil e nutrição do Maranhão -, não conseguia me desvincular da visão do todo: distribuir leite é um assistencialismo/paternalismo do governo em grau cru, e isso não pode ser a melhor forma de um país andar pra frente. Paternalismo como esse é a receita embolada para o não-desenvolvimento de um país, tornando-o dependente e sem planejamento a longo-prazo. Porque as pessoas terminam acostumadas a receber do governo, e como isso vem sem esforço algum, a sensação vigente no olhar das pessoas era do comodismo da obrigação do governo cumprida, e só. Nenhuma perspectiva de melhoria, de futuro, nenhuma ambição, nada. Péssima combinação de falta de educação básica com assistencialismo eleitoreiro: pode gerar marasmo psíquico. Mas… é exatamente a falta básica de comida que precisa ser sanada em primeiro lugar! É muito complicado julgar toda essa situação e perante essa dicotomia filosófica incômoda que tomou parte do meu pensamento ali, dentro daquela toyota, confesso que senti tristeza por aquelas pessoas serem tão dependentes do governo.
Um dos responsáveis regionais pela distribuição de leite deixando alguns saquinhos numa casa com geladeira. Abaixo, uma criança enche sua bacia com leite – talvez sua única esperança de ingestão de cálcio e proteínas naquele ambiente arenoso.
Casebres espaçados iam brotando em meio à restinga densa que marcava o caminho – muito arenoso, e quanto mais perto chegávamos de Santo Amaro, mais alagadiço o terreno ficava. Sem dúvida, só carros 4×4 chegam até o vilarejo. Duas horas de toyota, leite e travessias de lagoas, e eis que um rio aparece. Do outro lado, Santo Amaro. Eu não acreditava no que via, mas a toyota foi se enfiando dentro do rio, entrou água dentro de onde estávamos, e aí eu entendi porque a bagagem tinha que ir obrigatoriamente no teto: a toyota efetivamente mergulha no rio para chegar em Santo Amaro. De acordo com os locais, mesmo carros 4×4 modernos, automáticos, têm muita dificuldade naquele trecho, porque sua parte elétrica em geral pifa com tanta água. As toyotas bandeirantes antigas são ainda a melhor opção para aquela não-estrada do interior do Maranhão.
O rio que temos que atravessar para chegar em Santo Amaro. E a toyota vai fundo, como podemos ver na foto abaixo, quando ela começa a mergulhar no rio.
Já passava das 5 da tarde quando enfim chegamos em Santo Amaro do Maranhão, com os pés molhados, na carona mais láctea e brasilianesca que poderia haver.
Tudo de bom sempre.