O mar em reservas

por: Lucia Malla Ciência, Ecologia & meio ambiente, Oceanos

Em setembro passado, voltando do Arquipélago de São Pedro e São Paulo, André passou por Fernando de Noronha e ficou 3 dias mergulhando por lá. Quando lá estivemos em 2003, a ilha nos presenteou com um estado de conservação primoroso. Saímos de lá muito satisfeitos. Ali estava um exemplo de projeto de reserva marinha bem executado e gerenciado. Dessa última vez, André relatou que as coisas aparentemente até melhoraram – mais animais saudáveis, pelo menos embaixo d’água, são vistos em cada vez maior abundância. Maravilhoso.

Mar em reservas

Visões do ambiente marinho em Fernando de Noronha: cada vez mais lindo! (E abundante, o que é melhor ainda.)

Há poucos dias, eis que me cai nas mãos uma série de relatórios didáticos sobre o estado das reservas marinhas nos EUA e no mundo, feito por um consórcio de pesquisadores das universidades de Stanford, Oregon e California (Santa Barbara e Santa Cruz). Em grossas linhas, sugere-se que o número total de reservas marinhas pelo mundo é ínfimo, a eficiência das áreas protegidas ainda precisa melhorar e o maior desafio à implementação das mesmas são entraves econômicos e sociais. Nada disso soa como novidade, eu sei, mas acredito que algumas elucidações trazidas pelo relatório cabem aqui ser discutidas.

A mais interessante delas é a distinção entre reserva marinha e área de proteção ambiental em parâmetros mundiais. Não apenas a distinção conceitual, mas a distinção de resultados para o ambiente. Nas reservas marinhas, a única atividade econômica permitida é o ecoturismo, mesmo assim com restrições. Conceitualmente, as reservas são protegidas completamente e têm acesso controlado rigoroso. Nas áreas de proteção, por outro lado, há a possibilidade de pesca (nem que seja por um período do ano apenas), há o turismo com menos rigor e a proteção pode ser apenas parcial (a determinadas espécies, épocas do ano e afins). Mas por que existe essa diferença na hora de se determinar uma área marinha necessitada de proteção?

Basicamente, por causa do fator humano. A vontade geral dos ambientalistas e cientistas envolvidos em questões de conservação é proteger tudo, mas é claro, não se deve esquecer das pessoas que moram/vivem dos recursos que aquele pedaço do oceano dispõe – além dos interesses macroeconômicos de desenvolvimento, como no caso do porto de Suape, que todos sabemos o problema que gerou. Mas comunidades pesqueiras, em sua maioria, dependem do mar para sobreviver, e é baseado nessa realidade primária, nessa preocupação social, que as políticas de proteção em geral escolhem o que a área será, se haverá impedimento total de acesso pesqueiro (reserva) ou parcial (área de proteção).

Dos 2.2 milhões de km quadrados de mar protegidos do planeta (isso dá ~0.6% do mar inteiro, o que por si só já é um número ínfimo), apenas 36,000 km quadrados são reservas marinhas. É menos de 0.01% desses já minúsculos 0.6% do oceano. Todo o resto nesses 0.6% são áreas de proteção, onde há uma flexibilidade maior que permite o uso dos recursos da região. Entretanto, no mesmo relatório, comparam-se as duas formas de gerenciamento ambiental em relação às melhorias para a biodiversidade, para o ecossistema e até para as populações vizinhas. O resultado é impressionante.

Devido à inexistência de barreiras geográficas embaixo d’água para a maioria dos animais que lá habitam, a proteção total de uma área permite que os mesmos aumentem em número e extravazem seus limites de hábitat para áreas nas redondezas – o que faz aumentar a população de uma espécie como um todo num raio maior do que o da reserva em si. Ao extravasar para áreas não-protegidas vizinhas, beneficiam os moradores da região. Um belo exemplo desse tipo de enfoque aconteceu na ilha de Apo, nas Filipinas. A região de reserva é intocável (aberta apenas a mergulhos recreativos), mesmo pelos pescadores da ilha. Mas como a reserva permite que os peixes vivam e cresçam bem, depois da instalação da reserva, os pescadores conseguiram aumentar a longo prazo a produção pesqueira local, principalmente em qualidade – o problema dessa estratégia está no “longo prazo”, que muitos não conseguem visualizar muito menos têm paciência de esperar. Educar os pescadores a entenderem que dá certo é o desafio maior.

Em áreas designadas “reservas”, os animais também têm a possibilidade de completar seu ciclo de vida sem interrupção temporal, e com isso, crescerem mais. Peixes que crescem mais geram mais filhotes, como mostra claramente o gráfico abaixo, que usa como exemplo a garoupa de coral.

Ou seja, há uma diminuição do perigo de extinção não apenas pela proteção daquele indivíduo, mas por um aumento populacional saudável, de acordo com as leis naturais. Tamanho é documento para as garoupas. Pelo menos, maior garantia de prole, maior probabilidade de deixar herdeiros.


Garoupa de coral: quanto maior, mais filhotes viáveis.

Um outro dado interessante levantado é que não interessa muito o tamanho da reserva nem sua localização. Tanto reservas em águas temperadas como em águas tropicais são igualmente eficientes na melhoria da biomassa. Mesmo reservas minúsculas trazem benefícios a espécies pequenas – as espécies maiores requerem inevitavelmente áreas maiores, para novo desconforto político-ambiental. Há de se olhar portanto as espécies-alvo, mais necessitadas de proteção – se forem invertebrados, pode-se cogitar diminuir o tamanho da reserva para prejudicar menos a população humana.

E quantas reservas devem existir? Quanto mais, melhor? Em minha opinião pessoal, na atual conjuntura de calamidade que o mar se encontra, quanto mais definirmos áreas como reservas, melhor. Elas podem ser nossa última alternativa para solucionar a questão da destruição dos oceanos. Entretanto, a necessidade de sustentabilidade com os humanos ao redor nos leva a ter que elaborar um pouco mais para obtermos um bom resultado sem prejudicar pessoas. O ideal é usar um conceito muito popular na ecologia hoje em dia e fazer uma série de áreas interconectadas e adjacentes, numa espécie de corredor ecológico, que liga uma reserva a outra, sucessivamente – no ambiente terrestre, temos na região norte do Brasil o maior corredor de floresta tropical do mundo, que liga diversos fragmentos de reserva incluindo Amanã, Mamirauá e Jaú. O conceito de corredor não se aplica no mar da mesma forma, pois o mar não tem fronteiras tão claras e delimitadas como em terra; mas a idéia de ter reservas de localização próximas permitiria a formação de uma rede de troca genética e de espécies entre as reservas, aumentando a biodiversidade de forma saudável, sem a intervenção humana predatória e mantendo as leis de seleção natural como únicas responsáveis pelo aumento/decréscimo de populações. Deixando a vida rolar.

Mas nem sempre a intervenção humana é predatória. São os pescadores que mais sofrem quando o peixe acaba, e são eles que se organizam em associações e pedem soluções inteligentes aos governos. São os cientistas que fazem levantamentos, estudam espécies e possuem um maior aparato de informação para julgar a validade de uma reserva em certa região. São os governos que têm o poder de definir uma reserva, implementar políticas conservacionistas e garantir fiscalização contra pesca ilegal e quetais. Portanto, está nas mãos de humanos a gestação de uma reserva. Mais que problema, somos também a esperança de solução.

Pesquisadores em ação, angariando dados para a criação de áreas de proteção ou reservas em atóis das Ilhas Marshall… (Mais fotos dos atóis estudados aqui.)

… e pescadores, os primeiros beneficitários com a criação das mesmas – embora, num primeiro momento, possa haver relutância. Questão de ensinar e explicar com clareza, portanto.

Digo isso porque é muito fácil apontar o dedo e dizer que o governo deveria se mobilizar para criar uma reserva na área x, os pescadores deveriam parar de pescar, etc e tal, mas esquecemos frequentemente que muitas dessas ações começam da vontade e/ou necessidade popular expressa de alguma forma. O político não vai simplesmente um dia acordar e definir uma reserva. Ele precisa de respaldo científico, social e principalmente econômica, já que implementar e manter uma reserva custa dinheiro e deve gerar (na mentalidade vigente) algum tipo de benefício como retorno.

No Brasil, há apenas 2 reservas marinhas: o complexo Fernando de Noronha/Atol das Rocas e Abrolhos. Todas as demais áreas do litoral ambientalmente importantes são apenas “de proteção” ou não englobam o ecossistema marinho em sua completude, sendo apenas reservas “terrestres” (os Lençóis Maranhenses são um exemplo bom nesse caso). Em ambos os casos, o governo explora o ecoturismo como forma de gerar renda para manter a área como reserva. É uma alternativa – talvez não a mais eficiente, mas já é algo.

E Fernando de Noronha a cada ano que passa parece corroborar mais na prática a importância das reservas como a melhor alternativa tanto para a população quanto para o ambiente. É o melhor meio-termo que se pode imaginar no caos azul que nos encontramos – o único pré-requisito para essa solução é aprender a pensar em longo prazo nos seus resultados. Só assim, a gente terá chance de resgatar o pote de ouro do fim do arco-íris.

Tudo de mar sempre.

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– E eis que mais uma reserva ambiental está sendo invadida por pescadores ilegais. Dessa vez, em Palau, para o comércio de animais vivos em Hong Kong. Deprimente. Quem deu o alerta ao mundo foi o pessoal da Sam’s, com quem mergulhamos em Palau.

– Esse post é minha contribuição ultra-super tardia ao Roda de Ciência do mês de novembro e dezembro, que discutiu os mares do planeta. Mesmo atrasadérrima, eu não podia deixar de dar meu pitaco sobre esse tema que para mim é de importância máxima.



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