O sorriso de Tadeu

por: Lucia Malla Amigos de viagem, Cotidiano, Mallices

Tadeu de zoeira, no colo de um amigo de classe.

Todo dia 08 de maio eu me lembro do aniversário do Tadeu.

Tadeu estudava na mesma escola que eu frequentava, e estava apenas 2 anos atrás de mim. Era mais-que-conhecido de todas as meninas, pois fora eleito um dos mais “gatinhos” do colégio. Moreno charmoso, de feições índias, olhar intrigante e sorriso discreto. Todo dia 08/maio, juntávamos na escola para deixá-lo sem graça, cantando parabéns coletivo ou fazendo brincadeiras. Ele, tímido que só, avermelhava-se com essas demonstrações exageradas. E ríamos todos.

Tadeu não era muito meu amigo: de vez em quando trocávamos um “oi, tudo bem? o que anda aprontando?”. Ele também não era uma pessoa de muitas palavras com ninguém, meio caladão e observador – um ar estranhamente sereno no meio daquele turbilhão de hormônios adolescentes que é um colégio de 2º grau. Bom aluno, de poucos 10 mas nenhuma nota vermelha. Dedicado.

Eis que Tadeu tinha entretanto uma doce mania de oferecer flores na hora do recreio para diferentes meninas, que se derretiam com o gesto. Não sei como as escolhia, mas fato é que ele vinha com aquele raminho pequeno de margaridinhas por trás, cantando:

“Eu sou aquele amante à moda antiga/ do tipo que ainda manda flores…”

No início da década de 90, nada podia ser mais fora de sintonia com a juventude que cantar Roberto Carlos. E ele o fazia sem pudores: com flores – e um velho tênis e a calça desbotada. Galanteador em doses homeopáticas, claramente sem outras intenções a não ser um sorriso de retribuição; um encanto de menino.

Quando eu estava no último ano de escola, e ele no início do 2º grau, começamos a conversar um pouco mais via festinha de amigos. Passei a fazer parte do rol de meninas a quem ele oferecia flores no recreio, de vez em quando. Eu era nessa época uma dessas figuras carimbadas da escola, envolvida em tudo quanto é projeto maluco que os professores inventavam em seus momentos de delírio educacional – conhecia a todos e tinha garantia de uma vida social adolescente agitada. Adorava a interação com o pessoal das diferentes séries, mas Tadeu e eu continuávamos mais colegas que amigos “confessionais” (dos milhares que se tem quando crescemos em cidade pequena). E mesmo estando no pré-vestibular, eu arrumava tempo para minha dose diária de mar – crescer na beira da praia tem suas vantagens.

E foi na praia que Tadeu passou a marcar sua presença mais fortemente. Ele passeava com seu enorme cão todos os dias na areia. Eram carne e unha, amigos inseparáveis. Às vezes, parava para um bate-papo light. Outras, passava correndo, exercitando-se que estava. Mas sempre com seu sorriso tímido, olhar ameno e revelador de uma doçura sem fim, acenava educadamente. Tadeu nunca se metera em briga na escola, e levava essa pacatez para sua vida lá fora. Tadeu passou a ser parte do meu background neural de cena na praia, e eu nem percebi isso.

O tempo passou, eu mudei de cidade, mas sempre que aparecia para visitar meus pais, ia à minha praia e lá estava Tadeu no mesmo horário do fim de tarde. Mesmo à distância, aquela era a imagem esperada: Tadeu correndo com seu cão na praia era o óbvio, o “normal”. O conforto da rotina toma conta e a gente só percebe muito tempo depois a força dessas visões que não damos valor, o quanto elas se incorporam em nossas cabeças nostálgicas.

Minhas visitas aos meus pais foram se escasseando com o andar da faculdade, e comecei a ficar muitos meses sem ir à minha praia. Até que numa dessas vezes, já depois de um tempo no exterior, encontrei um amigo em comum, o César. Conversamos muito e me dei conta de que não via mais Tadeu pela praia. No silêncio do meu pensamento, achava que teria crescido, arrumado um emprego e levado a vida adiante como a regra dita. Amadurecido, enfim. Mas minha curiosidade falou mais alto, e perguntei ao César: você tem notícias do Tadeu?

“Tadeu morreu em um acidente de moto no sul da Bahia, no ano passado.”

A frase ecoou e nada mais ouvi das palavras do César. Um vácuo de momento, desses que a gente nem sabe explicar, tomou conta de mim. Parecia impossível acreditar que um moço forte, de doçura incontestável, com postura serena perante a vida e o mundo, com tanto a descobrir ainda, no auge dos seus 22 anos, pudesse não mais existir. Mas era o fato, e aceitá-lo era tudo que podíamos fazer.

Desde então, quando visito a “minha” praia, um ar de nostalgia me inunda. Muitos grandes amigos fiz ali, muitas experiências e conversas vivi em meio ao barulho constante das ondas do mar. Mas é do “amigo do background”, com quem pouco conversei na vida e com cuja calma e doçura muito me identifiquei, de quem me recordo com toda força. E bate um aperto danado saber que não mais verei o Tadeu. Como se a imagem dele correndo com seu cachorro representasse o esvair de um pedaço da memória adolescente, perdido para sempre.

Saudade não tem mesmo data de validade nem consumidor preferencial. Secretamente, a saudade da adolescência ressurge em minha memória todo dia 08/maio, aniversário do Tadeu. Sob a forma de um moço moreno, de olhar discreto, acenos suaves, correndo na praia com um cachorro, cheio de vontade de começar a viver: uma cena infinita enquanto durou. Tadeu, mesmo não estando lá, sorri para mim ao som do vento, e me relembra, com o ânimo de sua juventude eternizada, que o tempo de se viver é agora.

Tudo de nostálgico sempre.



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