por:
Lucia Malla
Amigos de viagem, Antigos, Blogversário, Cotidiano, Rio Grande do Sul, Viagens
Publicado
01/10/2009
Redondezas.
O convidado de hoje é uma das pessoas mais amáveis da blogosfera brasileira. Um moço de criatividade ímpar, que sobretudo é sócio-fundador e síndico de um dos portais mais bacanas da net brasileira, o também 5-anista Verbeat. Que escreveu acima de tudo um manifesto pela liberdade da comunicação da rede ainda nos idos de 2004. Que faz (e compartilha) músicas com os amigos como um irmão antenado com a vanguarda do som. Que sobretudo tive a felicidade de conhecer em uma passagem relâmpago por Porto Alegre, quando nos hospedou em seu chateau com todos os regalos e sorrisos possíveis. Que aliás não cansa de ser um barato. Um grande barat(ei!)o – quase um bereteio. Ah, os bereteios…
Passeiem portanto pelas ruas de infância com a crônica deliciosa do querido Tiagón.
Redondezas
O lugar o e o não-lugar são polaridades fugidias. O primeiro nunca é completamente apagado e o segundo nunca se realiza totalmente – palimpsestos em que se reinscreve, sem cessar, o jogo embaralhado da identidade e da relação. (…) Praticar o espaço, escreve Michel de Certeau, é “repetir a experiência jubilosa e silenciosa da infância: é, no lugar, ser outro e passar ao outro”.
— Marc Augé. Não-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade.
Desde piá gostava de ter um livro nas mãos. Sem lá grande motivo aparente. Apenas lembro mais de eu-pequeno entretido com um gibi ou “A Vaca Voadora” do que correndo pela rua ou quebrando a casa com uma bola de futebol. E não que não gostasse de fazer bagunça (até não gostava, mas não tem problema). O fato é que me lembro mais de folhear papel do que desfolhar as plantas da mãe. (Já não lembro se me dependurei mesmo naquela samambaia ou se contive a vontade.)
Mas o meu livro preferido não era quadrinho nem literatura infantil. Era mesmo o Achei, aquele guia telefônico e de LOGRADOUROS, com seus mapas de segmentos de reta como ruas – no meu caso, de Porto Alegre. (Logradouro que cresceu comigo para se tornar uma de minhas palavras preferidas.)
Me sentava com o livrão no colo, abria os mapas e saía conhecendo a cidade toda. Partia sempre do meu endereço, pegava uma avenida conhecida e localizava a casa de um avô. Depois, o supermercado onde eu e o pai fazíamos compras aos sábados de manhã. A outra vó, que mora bem pertinho do colégio. Redondezas – procurava os nomes das ruas por onde já tinha passado e ficava feliz quando lembrava delas pelas placas (aquelas antigas, coladas nos cantos externos das casas de esquina). Também me dava pontos quando eu passava por uma rua inédita, mas que reconhecia do mapa.
(Gostava dos nomes pomposos, por exemplo Baltazar de Oliveira Garcia. Detestava os que referiam datas. Nunca esqueci enfim da rua Vacacaí.)
(Mas minha rua preferida, desde então e até hoje, em Porto Alegre, é a rua dos Andradas, eterna “rua da Praia”, naquele trecho da Praça da Alfândega. Porque guarda tanta história, soube mais tarde; porque tem a Feira do Livro, que me encantava e ainda hoje admiro e aproveito; porque um dia caminhando por ali com meu padrinho ele apontou “Olha ali, lembra do Mario Quintana dos livros da biblioteca do colégio?” e foi lá abordar o poeta comigo e apertamos as mãos todos e aquele sorriso de vô legal que eu guardo com um carinho que naquele dia era futuro.)
E então pegava um ônibus imaginário e fazia trajetos pelas páginas e páginas de mapas onde ruas amarelas eram imensamente largas e os retângulos verdes eram grupos gigantes de árvores a contornar. Becos sem saída representavam interrogações. Por que não tem saída? O que tem no fim da rua? Pode dar ré pelo menos? Grandes áreas, de poucas avenidas (um morro, por exemplo), geravam certa aflição porque pareciam ir terminando o mundo, um certo sem-fim remoto (o que depois se confirmaria). Cruzar pontes era sempre um bônus porque morar perto de ponte era algo exótico e bacana e por isso mais caro. Toda a orla do Guaíba tinha praia – mas era uma faixa de areia bem curta, onde não cabia quiosque como na praia de verdade.
Ruas que ficavam “sem solução” no mapa (limites da cidade, zonas mortas) eram os lugares que eu mais queria conhecer. Muitas delas levavam (levam) o nome de ‘estrada’ e isso lhes dava o charme selvagem de toda e qualquer grande viagem. (Ir a Cachoeirinha ou Alvorada — ao lado de Porto Alegre — era aventura.)
Enquanto criava meu mapa mental, sempre pensava nas pessoas que moravam naqueles espaços. Quantos prédios cabiam naquele centímetro entre uma quadra e outra, e naqueles onde havia casas também, e as quadras só de casas. Sempre colocava vários supermercados no caminho, pra ficar mais prático. Colégios nunca ficavam perto de zonas com crianças (pra que afinal a mãe precisasse levar e buscar de carro). As pessoas se divertiam mais nos bairros com quadras pequenas e ruas bem próximas umas das outras, porque era mais fácil fazer amigos. E as pessoas de bairros diferentes se conheciam em feiras que aconteciam nos lugares irrepetíveis da cidade, como os estádios de futebol e os cemitérios. (De que outra forma se encontrariam, se elas tinham tudo que precisavam nas redondezas de suas casas? (Menos as escolas?))
Não é que eu estivesse construindo uma sociedade harmônica e equilibrada. Eu estava apenas viajando. (Ri do trocadilho, vai.) Imaginauta: descobria espaços e queria dar significado a eles. Curiosidade de saber como é morar numa quadra tão grande. E longe da minha casa (e do meu colégio). Os espaços em branco do meu conhecimento diante daquele mapa corriqueiro eram um convite apenas por estarem ali. Da mesma forma como hoje, como tantos outros, alimento um desejo (como que) secreto de fazer a mochila ir pro aeroporto e escolher um avião (de olhos fechados) só pra ver o que tem no fim da linha dele.
Porque se eu olho pra um mapa — do que for: mapa-mundi, ruas de terra em Cacimbinha de Fora — ele exerce o mesmo fascínio que tinha há vinte anos atrás: são lugares que precisam ser descobertos porque descortinam mundos por detrás deles, remotos lugares que sejam; e estão ali à espera, na continuação de uma estrada que não veio mapeada naquele livrão no meu colo.
Contando assim, é de se espantar que hoje eu tenha um senso de direção tão absolutamente péssimo. Só guardo os caminhos repetidos todo dia e certamente já fui muito xingado por me meter a dar informação. Se me perguntam “onde fica rua X?” eu vou responder sempre solícito — entendo, nada pior que estar perdido, digo, nada pior que ter de pedir informações a um estranho — desce aqui, segunda à direita, primeira à esquerda. Na maior certeza. Sorrindo.
Pra alguns minutos depois me dar conta de que dei um caminho que não só não leva a lugar nenhum como não faz decerto qualquer sentido. (Desculpem. Não faço por mal. Nada pior que admitir diante de um estranho que se é incapaz de guardar os meandros do seu bairro (Freud poderia ter dito, aliás).)
Ou talvez minha bússola tenha se acostumado a criar seus próprios caminhos, mesmo.
(Ou ainda. Como Minha Imaginação Hiperativa Me Fez Tirar Péssimas Notas em Geometria)
~.~
Já era nos idos do fim da faculdade. Cheguei de uma festa com manhã firme lá fora. Deitei e liguei o rádio, baixinho — pra ter um barulho no ouvido até apagar. Passava um programete-cultura que contava as histórias dos nomes das ruas da cidade. Ao terminar, surgiu para o fecho um locutor clássico, voz de ressoar em tronco de árvore, recitando um poema. Lembro que me doeu no peito como um abraço da existência afinal. Porque viajar, pra mim, foi sempre misturar imaginação com a poesia dos lugares. Que são mundos. À espera diante da minha curiosidade.
E fazer o quê, se nem os caminhos do bairro eu consigo decorar?
Olho o mapa da cidade
Como quem examinasse
A anatomia de um corpo…
(É nem que fosse meu corpo!)
Sinto uma dor esquisita
Das ruas de Porto Alegre
Onde jamais passarei…
Há tanta esquina esquisita
Tanta nuança de paredes
Há tanta moça bonita
Nas ruas que não andei
(E há uma rua encantada
Que nem em sonhos sonhei…)
Quando eu for, um dia desses,
Poeira ou folha levada
No vento da madrugada,
Serei um pouco do nada
Invisível, delicioso
Que faz com que o teu ar
Pareça mais um olhar
Suave mistério amoroso
Cidade de meu andar
(Deste já tão longo andar!)
E talvez de meu repouso…— Mario Quintana. O Mapa.