Em tempos de pandemia e lockdown, em que de repente nossas casas viraram nosso mundo, fiquei curiosa quando vi a dica deste livro passando no twitter: “The Great Indoors“, de Emily Anthes. Um livro que explora o ambiente interior parecia ideal para ser lido neste período em que lockdowns pipocam e estamos impedidos de explorar de maneira plena o mundo lá fora.
Encarei a leitura com uma curiosidade básica sobre o quê exatamente seria discutido sobre ambientes internos. Confesso que me surpreendi positivamente. Emily Anthes fez um trabalho hercúleo na busca de trabalhos que trouxessem evidências testadas com metodologia científica para avaliar cada análise de ambiente que ela faz e o impacto no nosso comportamento e saúde.
Arquitetos, psicólogos, médicos e economistas são apenas alguns dos profissionais envolvidos na resolução dos diferentes desafios do design interior humanizado, que trarão benefícios às pessoas que usam estes ambientes.
Da casa para o cubículo
O livro segue como num crescendo musical, e gostei bastante desse ritmo. Começa com a análise da nossa casa “tradicional” neste mundo urbanizado. Sobre o quanto damos menos “valor” ao ambiente interno como parte da nossa saúde mental e física. Emily Anthes mesmo se define como uma “indoorsy”, alguém mais caseira – mas assume que se sente como uma minoria num mundo em que as pessoas adoram estar fora de casa.
No capítulo The indoor jungle comenta, inclusive, sobre a diversidade do microbioma das casas, um tema que já tinha me fascinado no livro do Ed Yong. Ressalta o quão rapidamente nós colonizamos com nossos micróbios os ambientes que vivemos. Ao ponto de ser possível saber quem mora numa casa apenas analisando as bactérias que lá vivem. Algo como um DNA da casa, único para cada bolha nossa de cada dia.
Logo depois, a autora comenta sobre outro ambiente interior muito comum a nossa vida moderna: o escritório. E praticamente escracha com a cultura do cubículo (ou baia). Pontua com precisão o quanto este design nasceu para trazer mais dinâmica e troca e se revelou o oposto, um local onde as pessoas terminam se fechando mais. Isto ocorre principalmente porque as pessoas percebem a ausência de privacidade como algo incômodo. Pior: ao se incomodarem com este ambiente, não só a produtividade das pessoas cai, como também sua saúde, sua capacidade de interagir com o outro e sua satisfação pessoal. Um paradoxo interessantíssimo, que só mostra o quanto o equilíbrio entre sermos seres sociais e privados é o que nos beneficia mais. Qualquer ambiente planejado que não encare esse paradoxo de frente logo se torna instintivamente “incômodo”.
Ambientes de encontro e comunidade
O livro então passa pela análise do ambiente interior de escolas, hospitais, prisões etc… Questões interessantes sobre o quanto um design e arquitetura interna bem planejados, pensados na vida em comunidade mas com respeito suficiente para a privacidade, podem favorecer o aprendizado das crianças, a recuperação dos doentes, e até mesmo a melhor reabilitação de criminosos.
O exemplo dado da prisão de mulheres de Las Colinas, em San Diego, aliás, é sensacional. Depois de uma grande reforma que tornou esta prisão mais aberta e com mais áreas verdes e de encontro, a violência tanto entre as prisioneiras como entre prisioneiras e guardas diminuiu drasticamente. Só que cai num dilema político. Qual político vai querer numa campanha declarar apoio à melhoria das condições das prisões para diminuir o sofrimento de estar numa prisão? A ideia de cadeia como punição total é mais forte ainda. Então financiamento para este modelo de prisão é muito complicado de se conseguir, e há pouquíssimos exemplos de cadeias assim no mundo. Embora os resultados científicos que estas poucas trouxeram na reabilitação dos prisioneiros, principalmente os de baixa periculosidade, serem positivos.
Design climático
Meu capítulo favorito de “The Great Indoors” é o que discute as casas em um mundo em crise climática. Gosto muito de ler sobre soluções criativas a este mega-problema da humanidade, e Emily Anthes não desaponta. Pelo contrário, ela traz exemplos incríveis de construção de casas mais resilientes. Principalmente, frisa que o conceito de resiliência é particular e regional, e que pensar em uma solução única de design interior para problemas diferentes é a receita para o desastre.
Um dos exemplos mais incríveis foi da “arquitetura anfíbia“. Em geral, as soluções para enchentes são construção de barreiras para conter a água. A autora introduz um movimento arquitetônico que traz uma inversão nesse pensamento. E se ao invés de bloquear a água, deixássemos ela entrar? Afinal, várias populações humanas estão acostumadas a viver em vilarejos flutuantes.
Nas palavras de Emily Anthes:
“The water gets to do what the water wants to do. It’s not a confrontation with Mother Nature, it’s an acceptance of Mother Nature. If you pick a fight with Mother Nature, eventually you’re going to lose.”
“A água faz o que a água quer fazer. Não é um confronto com a Mãe Natureza, é uma aceitação da Mãe Natureza. Se você brigar com a Mãe Natureza, em dado momento você vai perder.”
Depois do furacão Katrina que devastou Nova Orleans com enchentes assustadoras, a ideia da casa anfíbia foi solidificada. É barata e de fácil montagem. O empoderamento das pessoas de áreas mais humildes em terem uma solução de resiliência a enchentes que elas mesmas pudessem executar é algo sensacional. Mais: para criar as “bóias” que seguram a casa, pode-se usar garrafas plásticas – e reciclar esta poluição. (Eis algumas fotos de casas anfíbias.)
Lockdown na lua?
Para aqueles que, como eu, também adoram uma viagem na maionese, “The Great Indoors” termina em agudas notas. Afinal, a autora discute projetos e possibilidades de como seria uma casa ideal na lua e em Marte. Caso a população humana precisar desocupar o planeta, já teríamos então uma “colônia” em um ponto próximo do espaço.
É uma viagem total, mas que me atiçou a curiosidade, principalmente quando Emily analisa alguns aspectos práticos. Por exemplo, a fraca gravidade combinada a temperaturas insanas e a um ritmo circadiano atípico, tornariam praticamente inviável aos humanos curtir as áreas outdoors da lua ou de Marte. Porque até nosso sistema de fluidos – o sangue – poderia fluir de maneira anormal. Fora o eterno estado de jet lag…. Nestas condições, muito provavelmente viveríamos 99% do tempo em lockdown, confinados às casas que conseguiríamos ter lá. A ideia mais avançada é a de criar domos, já que este é um design geral de casa sustentável, resiliente e eficiente, que, além disso, consegue garantir áreas coletivas e espaço privado. Mesmo que estejamos longe de chegar nesse estágio da humanidade, só de elocubrarmos sobre já é instigante.
Por que ler “The Great Indoors“?
Em geral, o livro trouxe diversos conceitos, perspectivas e exemplos para reflexão. O trabalho bibliográfico de Emily Anthes embasando cada modelo arquitetônico e seus impactos é extenso, o que valoriza a experiência de leitura. Apesar de ter apanhado este livro como uma “curiosidade”, aprendi bastante. E para os mais céticos de que arquitetura e design possam influenciar nossa vida humana, deixo as palavras do arquiteto Francis Pitts, especialista em design de hospitais psiquiátricos.
“At the heart of the human-centered design movement is a commitment to kindness. Design can definitely be a way to be kinder. Or smarter.”
“No coração do movimento do design humanizado está o compromisso com a gentileza. O design pode definitivamente tornar-nos mais gentis. Ou mais inteligentes.”
E um mundo mais gentil é tudo que precisamos no momento.
Tudo de bom sempre.