No início, era o deslumbramento. Ou deveria ser, já que eu estava em Boston, na Harvard, o sonho dourado de qualquer pesquisador do planeta. Acontece que eu cheguei lá com tanta vontade de aprender e fazer ciência que não tive muito tempo para me deslumbrar com a universidade em si. Estava rodando na ciência entre os grandes. Encarei de corpo e alma o laboratório. Foi depois de algum tempo que comecei a realmente perceber a beleza e a delícia de andar sobre a grama do Quad da Medical School.

O “Quad” da Harvard Medical School.
Boston além da ciência
Boston é uma cidade vibrante, com uma vida cultural intensa. Espetáculos de dança contemporânea incríveis. Duas grandes escolas de música, a Berklee e o New England Conservatory, de onde saem os grandes nomes da música mundial, ambos a poucos quarteirões de onde eu trabalhava e com vários eventos musicais gratuitos nas noites da semana.
Se tem uma palavra que resumiu meu período extra-lab em Boston, essa palavra é música. Vi inúmeros shows maravilhosos, com artistas geniais (Dave Brubeck foi o mais marcante deles, sem dúvida), conheci músicos nota 10, frequentei gigs em bares de jazz inesquecíveis – o melhor deles era sem dúvida o Wally’s Café, na Mass Ave. Onde tinha jazz, eu estava pescoçando junto. Boston respira música e aquele ar me fazia bem.
11 de setembro de 2001
Mas nem tudo eram claves de sol. Poucos meses depois de eu ter chegado, houve o 11 de setembro, que abalou tudo e todos. Além disso, sofro levemente de depressão sazonal. Não suportava o frio, que em Boston é multiplicado pelo vento. Lembro de um Natal que fez -30 graus e eu chorei de frio no meio da rua. No inverno, tudo que eu queria era ficar em ambientes indoor, me dedicar mais ao laboratório, para pensar o mínimo no mundo ao redor que congelava.
O inverno aos poucos me destruía, mas o trabalho no lab me renovava a cada momento. Meu projeto era de biologia molecular hardcore, como sempre sonhei: entender mais detalhes do mecanismo de tradução de selenoproteínas, as proteínas que contém selênio em sua estrutura.
Rotina do lab
Minha rotina era semanal. Na segunda-feira, preparava as células de mesotelioma (um tipo de câncer de pulmão que produz grandes quantidades de uma selenoproteína). Na terça, transfectava o gene de interesse (mudava a cada semana, de acordo com os resultados que eu ia obtendo). Quarta era o dia mais light, em que eu apenas checava o andamento das células (e em tese podia ir a biblioteca ler algo, ou resolver coisas na rua). Quinta preparava as células para microscopia confocal, um processo que levava o dia inteiro de “tira e põe solução” em lâminas de vidro que escorregavam facilmente da mão. E sexta fazia finalmente a microscopia.
Era sagrado passar as manhãs de sexta na sala do microscópio confocal com minha amiga Michelle, a técnica responsável pela máquina, vendo células coloridas e conversando harvardices. Na sexta à tarde, se o resultado fosse bom, mostrava à chefe, que era uma pessoa maravilhosa. Se fosse ruim, quebrava a cabeça tentando entender para melhorar na semana seguinte. E assim foi minha rotina semanal em Boston.

Algumas fotos de microscopia confocal que eu fazia nas manhãs de sexta. A figura completa foi retirada do artigo que publiquei, e são células embrionárias de rim (A, G e H), de mesotelioma (um tipo de câncer de pulmão; B, E e I) e de hepatoma (câncer de fígado; C e F). Em azul em A, G, H e I, o núcleo celular. Em vermelho ou verde, as proteínas que estudávamos. Este artigo foi resenhado pela Science.
Formação cientista
Mas mais que a rotina laboratorial, trabalhar na Harvard me trouxe uma visão muito mais apurada da ciência em si. As discussões sobre o processo de formação de um cientista eram muito pragmáticas e riquíssimas, a concorrência entre labs era insana, e a sensação de “tenho que estudar mais” era uma constante adorável. Apesar do clima estressante, a Harvard era paradoxalmente muito boa de se trabalhar. No geral, não me sentia “estressada” em minha bancada, envolta em pipetas e placas de Petri.
Hoje, posso dizer que tenho saudades de Boston e dos tempos de Harvard. Não gostaria de voltar a morar lá, o frio excessivo ainda me espanta. Mas há uma saudade boa, de um momento que valeu muito a pena ser vivido. Fiz amigos de verdade, aprendi técnicas modernas, entendi a velocidade que a ciência tem no exterior (e por que a burrocracia brasileira é o maior empecilho ao pesquisador nacional) e principalmente como fazer/pensar ciência. Percebi que não precisa ser nenhum gênio para chegar na Harvard Square. É preciso determinação e aplicação, do fundo do coração, sem deslumbramento e com o pé no chão. Como em qualquer lugar e qualquer profissão do mundo, aliás.
Tudo de bom sempre.