Eu estava na casa dos meus pais quando o aloha spirit entrou na minha carreira científica. Trabalhava então em Boston, estava resolvendo coisas no Brasil, e precisei por algum motivo banal ligar para minha chefe na Harvard. Ao ligar, ela estava cheia de dedos. E começou a falar que o laboratório estava de mudança, que ela havia feito um concurso em outro lugar e passara.
“Se você não quiser ir junto, não se preocupe. Não ficarei chateada, entendo perfeitamente, e te referencio para outro professor que te aceite aqui, sem problema algum. Mas quero deixar a escolha a seu critério.”
“E para onde o lab vai se mudar?” perguntei já com receio da resposta. Sair de Boston para um cafundó republicano qualquer dos EUA não era o plano de carreira que pretendia viver. Mas aí veio a resposta em voz cautelosa:
“Er… Pro Havaí…”
“Eu topo!”
Paraíso da ciência
Sério, eu não pensei nem 2 segundos para responder. Como dizia minha vó, “vai perguntar a macaco se quer banana?” Ao ouvir a palavra mágica “havaí”, logo a imagem de sol e ondas me inundou o cérebro, e eu percebi que essa chance era única. Melhor, eu ia para lá trabalhar com o projeto científico que mais gostei na vida. Aquele a que mais me dediquei de corpo e alma, que mais me estimulara até então. Biologia molecular, praia, vulcões, calor: eu vislumbrava o paraíso.
Mudar um laboratório de um estado para outro não é tarefa simples. Pior, a alfândega no Havaí é bem rigorosa. Afinal, numa ilha, há de se controlar com cuidado o que entra e o que sai para não vandalizar o ecossistema. Uma semana antes da mudança efetiva, o laboratório foi “empacotado pra viagem” e nós, pesquisadores, liberados. Passei uns dias em San Francisco. E desembarquei em Honolulu numa linda e ensolarada manhã de sábado.
Parece incrível, mas ao desembarcar no aeroporto eu já me senti em casa. Fomos para o alojamento reservado para nós nesse período de transição. Mal deixei as malas no chão e peguei um ônibus até Waikiki. A primeira vez que você vê o Diamond Head, você não esquece. Jamais. A cada esquina andada, mais eu me encantava com a cidade. Bastava saber como seria trabalhar ali.
O começo na ciência
Levou quase um mês para liberar nosso “laboratório” das docas. Nesse período, fomos nos familiarizando com as pessoas e regulamentações da universidade, comprando equipamentos que não pudemos trazer de Boston, planejando os experimentos. Eu ia continuar o mesmo projeto com que trabalhava em Boston, o de tentar entender o mecanismo de tradução das selenoproteínas.
Como fonte de inspiração tínhamos a cratera do Diamond Head vista de uma das janelas, e o vale de Manoa com seus arco-íris quase diários da janela dos fundos, duas das paisagens mais belas da ilha de Oahu. Quando a mudança chegou, estávamos prontos e inspirados para começar a agir.
Como (des)orientar estudantes
Foi então que eu me vi fazendo algo realmente novo: orientar estudantes. Minha chefe me deu um estudante para orientar – depois, mais 2 se juntaram nessa experimentação biológica. Orientar me abriu a cabeça. Percebi a dimensão da dificuldade e beleza intrínseca do processo de aprendizagem científico. Explicar detalhes, mostrar como faz… Relembrei meu primeiro orientador “Nivaldo” e tentei ser como ele, minucioso, intrigante, indagador e respeitador do conhecimento alheio. Porque ensinar é uma via de dois caminhos: se você não aprende junto com seu estudante, você não está orientando.
Com os estudantes, o conceito de “rotina” mudou bastante. Antes, todo o trabalho dependia de mim, apenas. Eu pedia ajuda a colegas de vez em quando para uma ou outra atividade. Mas no final das contas, era eu colaborando comigo mesma. Já com orientados, passei a ter uma responsabilidade sobre a ciência do outro. Eu me esmerei ao máximo para transformá-los em cabeças pensantes científicas e não meros fantoches de bancada. Para isso, explicava, discutia, desafiava, animava-os a entender os fatos que o experimento coloca. Mostrei a importância da estatística e do ceticismo para a ciência.
Imagino que essa responsabilidade de orientar seja, guardada às devidas proporções, como após se ter um filho: você sempre fez escolhas para sua vida pensando apenas em você e depois do bebê, você passa a ter um ser humano que depende diretamente das suas escolhas, o que te força a pensar muito mais no que realmente deve ser feito, para não estragar a vida do outro. Tenho orgulho de dizer que fui bem-sucedida com os 3 estudantes. Uma delas, inclusive, se apaixonou tanto pelas intrigas e questões que se tornou uma CSI de verdade, usando a ciência para resolver pendências judiciais. Um barato.
Menos bancada, mais administração
De modo geral, minha rotina passou a ser menos de bancada e mais de organização do lab. Eu gerenciava os experimentos que os estudantes faziam, procurava novidades na literatura, tentava juntar as peças do quebra-cabeças que se desenvolvia na minha frente com todos aqueles dados de proteína, cultura de células, bactéria e microscopia confocal que se acumulavam. Era a tradução da selenoproteína que me intrigava, como o RNAm não se degradava no núcleo da célula, como isso afetava a função celular. Participava intensamente de todas as etapas do desenvolvimento científico, e essa estimulação constante me deu um prazer enorme.
Foi a época mais intelectualmente recompensadora em um laboratório por onde passei.
E isso sim é a definição de paraíso para um cientista.
Tudo de bom sempre.