Rodando na ciência: Potsdam – Sampa

por: Lucia Malla Alemanha, Ciência, Cotidiano, Mallices, São Paulo

Rodando na ciência - Potsdam e São Paulo

Minha história com São Paulo vem de muito longe.

Mais precisamente, do outro lado do Atlântico. Tudo começou em Potsdam, na Alemanha, para onde fui depois de me formar em Biologia. Fui fazer um estágio organizado pelo IAESTE, seria “summer student” de um laboratório de Fisiologia do Estoque Energético. Mas mais importante que qualquer outra coisa, seria também a primeira vez fora do país.

No laboratório, fui levada a trabalhar com um rapaz francês chamado Stéphane, que morava em Prenzlauerberg, Berlim. Rapaz sério, conhecia muito de metabolismo de gordura, além de Bauhaus e do Berliner-way-of-life dos primórdios da Love Parade. Stéphane se tornou um grande amigo. A gente se fala até hoje e ele veio ao Brasil 2 vezes – amou a Praia do Forte.

Em Potsdam, o laboratório trabalhava com fisiologia do tecido adiposo de hamsters na tentativa de entender a sinalização hormonal envolvida no desenvolvimento da obesidade. Minha chefe era renomada dentro do campo, e o mais interessante na rotina germânica eram as refeições, todas feitas em conjunto pelo departamento inteiro. Às 9 da manhã, café da manhã e às 12:30h, almoço (ou melhor, lanchinho do meio do dia, já que a maioria só tomava um copo de iogurte mas ficava sentado lá por meia hora conversando). Às 5 da tarde, a maioria já tinha ido embora para seus afazeres domésticos. Uma típica organização alemã, levada ao extremo. Nas palestras semanais, os cartazes anunciavam o horário e uma sigla estranha depois, que descobri significar 10 minutos de atraso. Ou seja, até para atrasar, os alemães eram organizados.

Fato é que saí da Alemanha muito interessada naquele novo campo que se abria para mim, o da Fisiologia Endócrina Humana. E escolhi-o como carreira. Entre os artigos que lera em Potsdam, havia o de um pesquisador brasileiro da USP. Escrevi para ele um longo email, perguntando sobre a possibilidade de trabalhar em seu laboratório. Fui aceita.

Precisava entrar no programa de pós-graduação da USP, e o fiz. Mas o pesquisador que me interessava estava saindo para um sabático em Boston, e fui então realocada para outro professor, supostamente da mesma área. Naquele momento, isso não me pareceu problema algum, mas burocraticamente, foi gerada uma tensão desnecessária que me calcificou muito na pós.

Foi nessa época que começou minha rotina laboratorial e estudantil. Entre uma aula e outra da pós, ralava no lab. Meu experimento consistia em colocar ratos na geladeira – e antes que qualquer um reclame, os ratos não sofrem à temperatura baixa, exatamente porque possuem um tecido adiposo diferenciado do humano, tecido este que eu pretendia entender melhor em termos de sinalização hormonal (principalmente, o envolvimento do hormônio tiroideano). Ratos no frio se comportam como se nada estivesse acontecendo, basta não se molharem – aí eles entram em hipotermia e podem morrer. Nas primeiras horas, ele até tremem um pouco, para produzir calor via ativação muscular, mas depois de um tempo, eles ficam a 4 graus numa boa, se adaptam mesmo. Entender as bases fisiológicas por trás desse mecanismo de adaptação ao frio dos roedores tornou-se então meu mote de tese. Era fascinante.

Em geral, chegava no lab e, após o café com o Zé e a Célia, começava o trabalho. Retirava as amostras de músculo e tecido adiposo do freezer -80, e começava a extrair o RNA dos ratos que ficaram na geladeira. Esse RNA era então utilizado para ser transcrito de forma reversa, ou seja, gerar uma molécula híbrida de DNA-RNA, que serviria de base para o famoso PCR, técnica que é largamente utilizada hoje nos laboratórios do mundo e rendeu o prêmio Nobel a um surfista que nas horas vagas fazia bioquímica. No PCR, ocorre uma multiplicação exponencial da molécula de DNA-RNA inicial, que realçará, depois de um número X de ciclos, as diferenças em expressão daquele RNA inicial.

Com os resultados de cada PCR feito, ia montando o quebra-cabeça do funcionamento fisiológico daqueles ratos. Mas vários problemas foram aparecendo pelo caminho – acho que raras são as pós-graduações sérias sem problemas, não? Frustrações principalmente com o meu orientador do papel, que era novato no departamento (eu era sua primeira aluna de pós). Frustrações também com a politicagem e burocracia envolvidas num curso de pós, com as fofocas de corredor, com os “Q.I.s” exigidos para que as coisas andassem. No meio da pós, eu era um estilhaço humano. Apesar da cidade de São Paulo, que eu descobrira, aprendera a gostar e cada dia se mostrava mais atraente e adorável para se viver, cheia da energia que eu precisava para sobreviver.

Fui então convidada a visitar um laboratório em Boston, onde alguns experimentos com camundongos em geladeira foram realizados na mesma linha de pesquisa – e onde meu escolhido orientador estava em sabático. Vieram de lá meus resultados mais interessantes, onde ficava claro o quão indispensável era o hormônio tiroideano no processo de adaptação ao frio dos roedores. De posse desses resultados, pude finalmente defender a minha tese.

A lição que ficou: ciência é uma caixinha de surpresas. Às vezes boas, às vezes nem tão boas. Mas o mais importante: você é quem decide quando abre sua próxima caixa de Pandora.

Tudo de bom sempre.

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Os posts da mini-série Rodando na Ciência você pode ler nos links abaixo:

Rodando na Ciência: Viçosa

Rodando na Ciência: Potsdam – Sampa

Rodando na Ciência: Boston

Rodando na Ciência: Honolulu

Rodando na Ciência: Coréia do Sul



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