Sexta Sub: Um presente de Natal científico

por: Lucia Malla Ciência, Crianças, Educação, Sexta Sub

Ganhei meu presente de Natal há três dias. Me emocionei, fiquei saltitante, não conseguia esconder o sorriso, chorei de felicidade, de esperança renovada, reações típicas de crianças que acabaram de ganhar o seu brinquedo sonhado. E toda esta enxurrada de emoções natalinas aflorou ao ler este post do Not Rocket Science do fantástico Ed Yong. É isso aí: um post de blog foi meu presente de Natal científico. Porque há muito tempo um post não me emocionava tanto. E há muito tempo a notícia de um artigo de ciência não emergia trazendo o verdadeiro espírito natalino.

Crianças cientistas

Um presente de Natal científico - sexta sub - crianças das ilhas do Pacífico - sobre artigo de ciência publicado por crianças de Blackawton

O post do NRS comentava, até então em primeira mão, a publicação de um artigo científico no Biology Letters sobre o comportamento de abelhas mamangabas. Este artigo foi escrito por crianças de 8 a 10 anos da Escola Primária de Blackawton, no condado de Devon, Inglaterra. As crianças, mentoradas pelo professor de ciências David Strudwick e pelo neurocientista Beau Lotto, observaram a natureza, elaboraram questões, afunilaram uma hipótese, pensaram nos experimentos, montaram os aparatos de experimentação, testaram, coletaram os dados, analisaram, chegaram a conclusões, discutiram-nas e… Publicaram.

Ou seja, fizeram ciência, da maneira mais pura e bela.

O artigo de ciência das crianças de Blackawton

Este artigo de ciência é escrito em linguagem infantil (exceto o resumo, escrito pelos adultos envolvidos). As figuras, por exemplo, foram desenhadas a lápis de cor. O artigo em si não tem referências como um artigo científico-padrão (uma das razões dada por Nature, Science, PLoS e Current Biology para rejeitá-lo). Ou seja, é ortodoxo, fora dos padrões tradicionais.

Mas é o mais lindo artigo científico do ano, sem dúvida. Porque traz a ciência, o processo de adição ao conhecimento humano, ao cerne da discussão e ao cerne dos nossos corações de volta. E levanta tantas outras questões sobre o processo de disseminação do conhecimento científico.

Um presente de Natal científico

Talvez seja o momento que estou que me aflora tal sentimento, estressada escrevendo alucinadamente dois artigos para publicação (em breve, espero!). E quem já escreveu um artigo científico das biológicas/biomédicas sabe o quão maçante e drenante (e recompensador também, convenhamos…) esse processo pode ser. O quão chato, rebuscado e desinteressante muitos dos artigos que a gente vê por aí publicados são. Mas você tem que lê-los, mesmo com toda chatice que os cientistas não conseguiram esconder, porque eles contribuem à sua pesquisa, àquilo que você acha realmente interessante, ao que você deseja discutir e adicionar ao corpo do conhecimento, e é assim que a ciência anda. Será mesmo?

E é aí que entra a beleza do artigo das abelhas de Blackawton para mim. O tom usado pelas crianças desperta a vontade primordial da cientista adulta Malla de voltar a ver a ciência dessa maneira tão simples, tão instigante, tão curiosa, tão infantil, que foi o que me levou a seguir essa carreira em primeiro lugar. Ao ser publicado na semana de Natal, o artigo virou para mim um verdadeiro presente de Natal científico. O maior de todos, aliás, aquele que te deixa repleto de esperança num futuro melhor para a ciência e para a humanidade. Aquele que te faz pensar e repensar o modo como conduzimos a ciência. Que traz de volta, perante gráficos e tabelas, o brilho infantil no olhar.

Comentários

Na mesma edição do Biology Letters foi publicado um comentário escrito por dois neurocientistas dando um background ao trabalho das crianças. Lá estão todas as referências tradicionais que os revisores que não entenderam a importância histórica deste artigo clamavam. O artigo produzido pelas crianças adiciona informação e insight ao corpo do conhecimento humano, tarefa número um de um artigo de ciência, mas relembra acima de tudo para nós, cientistas adultos, que:

“Science is cool and fun because you get to do stuff that no one has ever done before.”

(Eu não consigo segurar as lágrimas toda vez que leio essa frase. Aliás, toda vez que leio o artigo das crianças no Biology Letters. No vídeo, um dos garotos fala em “butterflies in the stomach” sobre a incerteza do experimento dar certo ou não! É muito inspirador, gente, MUITO LINDO! Que exemplo de proposta educacional científica!)

Porque a gente precisa alimentar sempre e bem a criança que está dentro da gente. Na bancada, entre pipetas e microtubos; no campo, entre transectos e armadilhas; na frente do computador, entre graphpad e pubmed; a todo momento da vida. Nunca deixar morrer “the butterflies in the stomach” no processo de fazer ciência.

Um feliz e inspirador Natal científico a todos!

A empreitada das crianças de Blackawton pela internet

A ciência em si por trás da publicação na Biology Letters foi dissecada (e festejada!) em diversos blogs e sites pelo mundo:

  • O PZ deu uma sugestão fenomenal: a criação de um jornal para que as crianças possam publicar trabalhos como esse. Não deixar essa experiência educacional morrer de jeito nenhum. (E aproveitou para dar a tradicional cutucada pharynguleana nos criacionistas…)

P.S.

  • A foto desta Sexta Sub são crianças numa praia nas Ilhas Marshall. A foto não é bem “sub”. Mas é molhada, tirada de dentro d’água, e acho que para celebrar o Natal aqui no blog este detalhe não interessa tanto. Mas o mais importante: NÃO foram estas crianças que publicaram o artigo na Biology Letters. As crianças da foto, aliás, mal têm acesso à educação formal, que dirá científica, isoladas que estão num atol minúsculo que em alguns anos pode desaparecer por causa da subida dos mares. Isoladas como muitas outras crianças pelo mundo, que se vêem afligidas por diferentes isolamentos: econômicos, políticos, de guerra, sociais. Mas quero ter esperanças de que as crianças destas crianças e de todas as crianças que hoje sofrem pelo mundo, possam um dia vir a desfrutar de iniciativas educacionais nesse naipe, que as levem a perceber o quão divertido é aprender, o quão libertador é não saber algo – e correr para tentar responder àquela pergunta de maneira curiosa, inteligente, racional. Seria o melhor presente de Natal de todos os tempos. E eu não perco as esperanças de que um dia este presente virá.
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