Em 1982, no auge dos meus 7 anos de idade, a minha professora da 2a série pediu para escrevermos uma pequena redação sobre a guerra das Malvinas. À parte a bizarrice pedagógica quase criminosa de pedir que uma criança que mal sabe escrever disserte sobre tema tão árduo – e naquele momento, tão incerto – isso é absolutamente tudo que eu me recordo sobre o evento. Fui ouvir de novo sobre a guerra somente no segundo grau, em uma aula de história. Nada mais que isso.
Mas é claro, o tema da guerra veio à tona de novo no início desse mês, quando estávamos na Argentina no feriado do início da guerra, 02 de abril. A Chris, que mora em Buenos Aires, comentou que normalmente os feriados no país mudam para a segunda-feira, mas o dia das Malvinas é tão importante que não muda, no dia da semana em que ele cai, tudo para.
No exato dia 02 de abril eu estava em Puerto Madryn e a cidade estava desértica, ruas sem movimento. Era nosso último dia por aquelas bandas patagônicas, e só me liguei que era feriado quando tentei comprar uns postais para uma amiga colecionadora, e boa parte das lojas estavam fechadas. Perguntei em portunhol vergonhoso a um taxista a razão e ele alegremente (!?!?) me disse que era o “Dia das Malvinas”.
No mesmo dia, partimos de ônibus para Buenos Aires. 18 horas depois, desembarcamos na capital – e já começamos a bater perna. A primeira parada da tarde foi na Casa Rosada e na Plaza de Mayo – e lá estavam os restos mortais de mais um dia de protestos em Buenos Aires: muitos cartazes, panfletos pelo chão (sujando a rua, diga-se de passagem), faixas em azul e branco com frases de efeito implicando com a ocupação britânica, como a célebre e onipresente pelo país “Las Malvinas son argentinas”. Um senhor em uma mesinha recolhia assinaturas para um abaixo-assinado em prol dos veteranos da guerra, e junto a ele, vários recortes de jornal contando como por pouco os ingleses não invadem também a Calleta Olivia, no sul do país, e começam uma grande jornada imperialista pela Argentina. Aos meus olhos, o foco dos protestos de 02/abril esse ano na Plaza de Mayo parecia voltado para os veteranos da Guerra das Malvinas, que pelo visto não estão sendo bem-tratados pelo governo. Clamavam por melhor aposentadoria, seguro-saúde e afins.
Cenas da Plaza de Mayo em 03 de abril de 2008, um dia depois do feriado das Malvinas. Muitas faixas, cartazes e folhetos ainda estavam pela praça, próximos à Casa Rosada – sinal de protestos que provavelmente se juntaram aos dos fazendeiros insatisfeitos com Kirchner. Na última foto, um recorte de jornal da época estampando a notícia de um possível plano britânico de expansão pelo continente argentino estava em andamento.

Monumento aos Heróis da Guerra das Malvinas, nos jardins do prédio das Forças Armadas em Buenos Aires.
(Parênteses: Vale registrar uma história que um argentino em Puerto Madryn nos contou. Ele disse que, depois da guerra finda, o governo inglês ofereceu enviar os corpos dos soldados argentinos mortos durante a guerra para serem enterrados na Argentina. O governo argentino recusou e disse que “Não precisa, porque os soldados já estão em solo argentino”. Fecha parênteses.)
De qualquer forma, diante daquelas cenas em plena Plaza de Mayo, eu me peguei pensando sobre a guerra em si. Sobre a Argentina, que nitidamente não engole a perda das ilhas e mantém firme sua convicção quase delirante (perante a situação geopolítica existente) de que as Malvinas são deles. Todos os mapas que vi na Argentina enfatizam as Malvinas e as ilhas do sul do Atlântico como território argentino, ignorando solene e propositalmente a possessão britânica de todas elas conseguida com a guerra. Os argentinos estão até hoje, aliás, tentando recuperá-las via diplomacia na ONU, com base no argumento da extensão da plataforma continental – argumento válido, por sinal. A batalha está de pé ainda e, óbvio, já chegou no mundo virtual : basta ler o verbete da Wikipedia em inglês e em espanhol para perceber as discrepâncias de visões.

A barraquinha de coleta de assinaturas pro abaixo-assinado dos veteranos da guerra na Plaza de Mayo.
O problema é complexo, e envolve o conhecido binômio território/poder. O Reino Unido chegou nas Malvinas em 1833, em sua época expansionista, sedenta por clamar todo território que pudesse – e tinha exército para isso. Entretanto, a Argentina as considera parte de seu território por inúmeras razões, entre elas pela proximidade da costa, pela plataforma continental (as Malvinas estão ainda na plataforma argentina) e pela história (dizem que Fernão de Magalhães foi o primeiro a ali aportar, e que portanto reclamou o território como colônia espanhola, parte da colônia argentina); quando a Argentina então se tornou independente da Espanha em 1820, logicamente as Malvinas passaram a ser território argentino. Até aquele momento, apenas um grupo de pessoas vindas da Argentina moravam lá – estavam nas ilhas só para garantir a soberania e o uso dos recursos naturais, principalmente baleeiros e de focas (ambos animais ricos em óleo). Aí em 1833 a Inglaterra chega com sua Marinha e decide que as ilhas são delas, estabelecendo um governo ilhéu – ter essa possessão significava para a Inglaterra um ponto próximo ao estreito de Magalhães, o atalho pra conquista do Pacífico. Estratégia, pura e simples.
E desde 1833, Inglaterra e Argentina disputam o arquipélago. Em 1982, as tensões culminaram e explodiu a guerra – a Argentina vivia uma ditadura militar, e o conflito é considerado por muitos como a última tentativa dos militares de melhorarem seu ibope, danificado pelas acusações de tortura e execução de muitos cidadãos. Os soldados argentinos invadiram o arquipélago e em menos de 3 meses, a Inglaterra os tirou de lá – de novo.
Para os 2,000 habitantes das ilhas, a maioria descendente de britânicos, a vida segue mansa e tranquila. Na cabeça da maior parte dos argentinos, entretanto, a presença britânica nas Malvinas é uma mera questão de tempo – em breve as ilhas serão argentinas de novo. A Inglaterra por sua vez não colabora para aliviar a tensão e só vem piorando a situação: recentemente, entrou com um pedido na ONU para anexar mais territórios-ilhotas do Atlântico Sul e um pedaço da Antártica, o que geraria um conflito de limites com a Argentina em pleno mar. Dessa vez, estão todos de olho nas reservas de petróleo, gás natural e recursos pesqueiros da região. A Argentina, é claro, já deixou furiosamente claro que está disposta a não-aceitar esse pedido de anexação britânico.
Mapa da Argentina com as Malvinas e ilhas do Atlântico Sul (Geórgia do Sul, Sandwich e uma fatia da Antárctica) em destaque como possessão argentina. Esse mapa estava na parede do albergue em Puerto Pirámides.
Ou seja, essa história das Malvinas parece que ainda vai longe, a contar pela teimosia e ganância britânicas e pelo quase-delírio coletivo argentino. Tomara que pelo menos a decisão da soberania (se vier, quando vier) seja agora diplomaticamente aceita (seja pra que lado for), e não se precise disparar uma bala sequer para apaziguar o ânimo de nenhum dos lados. Que nenhuma vida, humana ou não, sofra durante o processo.
Tudo de bom (quase) sempre.
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– Para viajar mais sobre as “Falklinas”:
– Há um fórum para se embrenhar na discussão dessa disputa online. Boa sorte a quem se aventurar por lá.
– Vários animais marinhos ameaçados de extinção fazem das ilhas Falkland seu lar. Pinguins, leões marinhos, elefantes marinhos, baleias franca… ter um governo decente nas Malvinas hoje passa também por uma boa política de proteção ambiental – seja lá quem ganhou ou vai ganhar o território.
– Embora pressionado por ambos os lados, o Brasil se manteve neutro durante a guerra das Malvinas. Ironicamente, eu me lembro que o nome adotado pela mídia foi “Malvinas” e não “Falklands”. Teria sido isso uma mensagem subliminar? 😉
– Para juntar a informação sobre a guerra nesse post, contei com uma colaboração especialíssima do Thiago, que deu 2 dicas fantásticas de textos sobre as Malvinas/Falklands. Obrigada, Thiago! 🙂