Caiu-me em mãos um artigo da Agência Fapesp sobre carne enriquecida com selênio (e vitamina E, e óleo de canola…), tão cheio de viagens na maionese e suposições-ditas-como-verdade que nem sei por onde começar a comentar. Eu adoro uma viagem na maionese, mas essa aí do artigo é daquelas que me manda rapidinho de volta a realidade do pé no chão e das sinapses funcionais. Sei que pode ter ocorrido um “lost in translation” típico da relação entre pesquisador e repórter da editoria científica em relação à ciência da coisa – que não é simples, admito; mas mesmo assim, uma pesquisada na wikipedia ou no google já dariam uma boa melhorada no artigo da Fapesp. De qualquer modo, como pesquisadora da área, acho que cabe aqui pausar um pouco as viagens reais e havaianices que inundam normalmente este blog, e deixar registradas minhas considerações críticas, com algumas correções.
![Suplemento de selênio](https://luciamalla.com/wp-content/uploads/2014/01/2014-jan-16-CarneComSelenio-300x450.jpg)
(Desculpem se em partes o texto ficar meio árido. É que estou escrevendo porque quero ventilar o meu pensamento, do jeitinho desordenado e cru que ele vem mesmo.)
Vamos lá.
Considerações críticas sobre carne com selênio e a glutationa oxidada
1. Glutationa oxidada não é uma enzima.
É um tripeptídeo, três aminoácidos: cisteína-glicina-glutamato. Em estado oxidado.
2. Glutationa reduzida também não é uma enzima.
É o mesmo tripeptídeo acima em outro estado de oxidação: reduzido, ou seja, com capacidade de ganhar elétron de outro composto.
3. “Suplementos de selênio orgânico”.
Eu tenho uma cisma com essa forma vaga específica de escrever. Que forma de selênio? Selenometionina? Selenocisteína? Seleno-metil-cisteína? Selenoneína? Selenium-yeast? Cada um destes tipos de selênio é absorvido, disponibilizado ao organismo e secretado de maneira diferente, em velocidades diferentes, portanto geram funções e reações diferentes nas células. Seja o boi ou a gente. Seria bom especificar.
4. Níveis tóxicos
Embora o músculo não seja um bom órgão de “estoque” de selênio (fígado, cérebro, rins e testículo são os órgãos com maior quantidade de selênio no organismo), a reportagem afirma que as concentrações de selênio oferecidas ao gado foram tão altas que chegaram a aumentar a concentração do nutriente no músculo do gado. Para acontecer isso, possivelmente o selênio no gado estava em níveis considerados tóxicos. O que, se você só se preocupa com a qualidade da carne e não com a qualidade de vida do boi, pode não ser um problema… Mas pessoalmente fico um pouco incomodada com isso.
5. Mecanismo bioquímico
O mecanismo bioquímico pelo qual o selênio influencia a diminuição da produção de colesterol via queda de atividade da HMG-CoA reductase, enzima responsável pela síntese de colesterol, ainda não é conhecido. Sabe-se, entretanto, que deficiência de glutationa em ratos não altera triglicerídeos nem colesterol no sangue. Medir glutationa reduzida e oxidada não é suficiente para confirmar nem negar causa, precisa de um experimento mais aprofundado. É, no máximo, uma boa correlação. A sugestão de ser via ativação da glutationa peroxidase (GPx) é válida, mas lembrando que as estatinas, que inibem exatamente a HMG-CoA redutase, diminuem a quantidade de GPx, e diminuem o colesterol do mesmo jeito. E aí, mais ou menos GPx na célula que é bom para o colesterol?
(Nem vou entrar no mérito de qual isoforma do GPx estamos falando… nem que camundongos com muito GPx1 são obesos, com hiperglicemia e têm resistência à insulina…)
6. Com vitamina E?
Misturar vitamina E e selênio em altas concentrações na mesma suplementacão (ou separados…) ainda é motivo de MUITA discussão entre os estudiosos. Em estudos clínicos com humanos, essa mistura não foi muito bem sucedida… de novo: tudo dependerá da biodisponibilidade de ambos os compostos.
7. Estabilidade oxidativa
Anteriormente foi demonstrado que selênio dado ao gado não aumentava a estabilidade oxidativa da carne. Esperando pra ler a discussão do dado de oxidação da carne medido por TBARS comentado no artigo da Fapesp em contraste com o artigo acima citado.
8. Selênio antioxidante?
Talvez a frase que mais se discutiu no último congresso de selênio que fui em Berlim foi: “selênio é um antioxidante”. O que é um antioxidante? As definições são as mais variáveis possíveis, e por isso, há um grupo significativo de selenólogos que abomina esta frase. Alguns sugeriram inclusive abolir essa caracterização do selênio, por ser extremamente generalista – há selenoproteínas que não são “antioxidantes”, há compostos de selênio sem ação antioxidante. E por aí vai.
9. Modelo animal
O consumo da carne enriquecida com selênio de um animal com menos colesterol não foi demonstradao eficiente (ainda) para diminuir o colesterol em humanos idosos, como o próprio artigo cita lá no finalzinho – os resultados dos exames de colesterol dos idosos ainda estão sendo analisados. Apesar de toda a forçação lógica sugerida no início do artigo, que induz à conclusão falaciosa de “mais selênio = menos colesterol”. A resposta simples é: ainda não sabemos.
10. Forma química do selênio
Entretanto, o artigo afirma que os níveis plasmáticos de selênio e vitamina E nestes mesmos idosos já tinha aumentado. Aqui, vale perguntar: em que forma o selênio está nesses indivíduos? Selenoalbumina (como a maior parte da selenometionina é incorporada)? Selenoproteína P (mais disponível para uso biológico direto na célula)? Incorporada ao GPx3 plasmático? Esta é uma questão importante principalmente para avaliar a suplementação como benéfica ou não à saúde humana.
11. “Em países desenvolvidos, já existe esse tipo de produto.”
Sim, e nestes países, estudos robustos, com milhares de indivíduos e medindo e comparando as concentrações no solo em diversas regiões do país, demonstraram níveis de selênio deficitários na população, um dado que costumeiramente reflete a deficiência no solo. Podemos afirmar o mesmo da população brasileira? Achei esse estudo feito com 193 brasileiros dizendo que há uma certa deficiência na população de São Paulo comparada ao norte do país – o solo rico em selênio em partes da Amazônia e a presença da castanha-do-pará, riquíssima em selênio, na dieta, contribuem para tal dado. Se alguém achar outros artigos, por favor deixem link nos comentários, que eu adorarei ler, mesmo.
12. Selênio tem inúmeros benefícios.
Mas a quantidade necessária para uma boa saúde varia muito pouco, em torno de 55 microgramas por dia. Facilmente a carne enriquecida pode alcançar o efeito oposto na população: supranutrição de selênio. O que é causa para outras preocupações, como diabetes.
13. Deficiência e subnutrição são coisas diferentes.
Deficiência de selênio é uma patologia nutricional bastante rara – em partes da China, Finlândia e Nova Zelândia, apenas. O que existe em geral é subnutrição de selênio, ou seja, consumo abaixo da média. Os efeitos da deficiência de selênio são conhecidos há décadas; da subnutrição, ainda tem muito chão de pesquisa científica para se percorrer para entender. Mas há pistas: correlação com certos cânceres e com problemas tiroideanos em humanos, por exemplo.
14. Pioneiro?
Estes estudos de enriquecimento do leite e da carne de bovinos por meio de suplementação, aliás, não são tããão pioneiros, né… Menos, pessoal.
15. Benefícios
Ditas estas considerações, é muito provável que algumas pessoas terão, sim, benefícios à sua saúde ingerindo carne enriquecida com selênio e vitamina E. Isso enfim faz valer a pesquisa. Mas é preciso que fique claro que alguns critérios para que este benefício à saúde exista terão que ser investigados individualmente, ANTES do consumo liberado. Principalmente, identificar populações que se beneficiariam mais daquelas que poderiam sofrer danos à saúde a longo-prazo.
Acho que é isto que eu tinha para comentar.
Tudo de selênio sempre.
P.S.
- Para saber mais: Sobre o selênio e a selenocisteína.