Saiba como selênio afeta o estresse oxidativo e, por conseguinte, o desenvolvimento do mal de Parkinson.
Um dos conselhos que mais ressoou na minha cabeça da palestra do PZ Myers a qual assisti mês passado foi a idéia de usar o blog para divulgar a própria ciência, para o público geral não-especializado. Ressoou porque eu percebi que faço pouquíssimo isso. Há um post aqui, outro acolá, mas nada relacionado às questões que diariamente me perturbam, às quais tenho curiosidade em responder – muitas delas ainda não publicadas em jornais especializados, estas portanto complicadas de serem discutidas em diversos aspectos num blog.
Mas mesmo assim, decidi que deveria começar uma tendência por aqui, de contar e discutir um pouco mais das pesquisas que faço, participo ou dou intensos pitacos.
Então vamos lá.
Selênio
Como já falei antes, trabalho com selênio. Um elemento que a gente chama de micronutriente, porque é necessário ser ingerido por todos, mas em quantidades minúsculas. Muito selênio é tóxico, pouco é prejudicial. Equilíbrio é a palavra-chave.
O selênio é fundamental para a vida de todos os organismos, desde bactéria até a gente – ou seja estudá-lo engloba basicamente estudar todos os ramos da vida. Está envolvido em diversos processos metabólicos básicos, como reações de desintoxicação dos radicais livres. Por funcionar assim, o selênio é considerado um antioxidante – e na maior parte das vezes em que ele está agindo na célula é nessa função.
Nós (e todos os animais) temos enzimas, chamadas peroxidases, que degradam os peróxidos e superóxidos, transformando-os em água e oxigênio. E um grupo destas enzimas, as GPX (da sigla em inglês para glutathione peroxidase) têm selênio no seu centro ativo; sem selênio, elas não funcionam. As GPX estão na base da função antioxidante das células, reagindo com peróxidos de hidrogênio e gorduras peroxidadas, entre outras moléculas. Já foi demonstrado que um organismo sem a GPX4, por exemplo, não sobrevive. Não consegue nem ser gerado, aliás. (A GPX4 especificamente degrada os peróxidos ligados à moléculas de gordura.)
Estresse oxidativo
Então que, se estas enzimas não funcionam direito, as células começam a pifar por excesso de “estresse oxidativo”. (À medida que envelhecemos, por exemplo, estas enzimas vão diminuindo em quantidade e ficando menos ativas, até que a célula não aguenta tanto estresse oxidativo e kaput.) Vários estudos das últimas décadas vêm mostrando que diversas doenças e estados patológicos, como diabetes tipo 2, arterosclerose, infertilidade, diversos cânceres, mal de Parkinson… são ligados (ou pelo menos fortemente correlacionados) ao bom funcionamento das GPX.
No início deste ano, um trabalho no qual colaborei foi publicado (Bellinger et al.), onde mostramos o envolvimento do GPX4 no mal de Parkinson. Esta doença neurodegenerativa é caracterizada principalmente pelo tremor do movimento (a pessoa treme ao tentar mover algum músculo voluntariamente), o que é causado não por uma falha na musculatura, mas por uma falha central, no hardware: a morte dos neurônios que produzem o neurotransmissor dopamina em certas áreas do cérebro. Principalmente na área chamada substância negra (SN, e em inglês, usa-se o termo latim substantia nigra para denominar tal região).
Selênio e estresse oxidativo no mal de Parkinson
Nosso trabalho analisou a presença do GPX4 nos neurônios que produzem dopamina da substância negra. O twist super-bacana foi que tivemos acesso a cortes do cérebro de pessoas que morreram de Parkinson ou que desenvolveram Parkinson durante a velhice (e morreram de outras causas). Estes cérebros vieram, na realidade, de um estudo de longevidade que foi feito aqui no Havaí com uma parcela da população japonesa-americana, os nascidos entre 1910 e 1920. À medida que estes voluntários foram morrendo, seus cérebros foram doados à ciência e coletados na autópsia. E estão aos poucos ajudando a ampliar nosso conhecimento sobre diversas doenças cerebrais – há outros grupos analisando demência, por exemplo. No nosso estudo usamos 12 cérebros com Parkinson e 11 de pessoas que não tinham a doença (grupo “controle”), que morreram em média com 84 anos.
Na foto (que considero a figura mais importante do artigo, feita pela minha colega de lab Andrea), vocês vêem neurônios da substância negra de um cérebro normal e outro com Parkinson. Como podem perceber, há uma nítida diminuição da quantidade de GPX4 (em marrom) geral no cérebro doente (A, expressa em gráfico no B).
Mas um cérebro com Parkinson sofre também um decréscimo gigantesco no número de neurônios. Então, quando a gente corrige a quantidade do GPX4 pelo número de neurônios, gerando a densidade de GPX4 (C), o resultado que aparece é super-interessante e uma surpresa: o GPX4 está na realidade em maior quantidade. Uma resposta da célula ao estresse oxidativo da presença da dopamina oxidada (inativa) e de outros peróxidos, que se acumulam mais e mais à medida que a doença progride. É como se o GPX4 fosse o último suspiro do neurônio: lutar contra o estresse oxidativo até o fim, antes de sucumbir.
Impacto
Esta descoberta na pesquisa do Parkinson’s pode ter um impacto significativo. É a primeira vez que se mostrou em humanos o quanto uma enzima com selênio está envolvida na proteção do neurônio, especialmente quando a dopamina começa a pifar. Melhor entendimento do processo de acúmulo de peróxidos no neurônio pode ajudar num futuro a descobrir uma alternativa terapêutica. A esperança é sempre a última que morre, não é mesmo?
Tudo de bom Sempre.
P.S.
- Nem vou comentar o quão importante essas pessoas e famílias que consentiram na doação estão sendo pro avanço do nosso conhecimento sobre mal de Parkinson em diversas frentes da pesquisa científica. O quão crucial é o voluntarismo para a descoberta de curas e para a melhoria da qualidade de vida das gerações futuras. Reflitam sobre, à vontade.