por:
Lucia Malla
Brasil, Brasil, Parques Nacionais, Praias, Parques Nacionais, Praias
Publicado
09/11/2008
A aventura mais bizarra da viagem que fizemos pelo Brasil foi sem dúvida a que passamos lááá no sulzão do Brasil, onde o vento Minuano faz a curva, numa cidade simpática chamada Mostardas.
Mostardas é o ponto de partida para os que desejam visitar o Parque Nacional da Lagoa do Peixe, criado em 1986 e decretado Reserva da Biosfera pela UNESCO em 1998. Área única de passagem de uma enorme quantidade de aves – de acordo com nosso Guia de Parques Nacionais da Folha, cerca de 40 milhões de aves passam por ali no pico da estação, com mais de 180 espécies catalogadas no parque. A maioria destas aves migratórias param na Lagoa do Peixe se protegendo do inverno nas regiões mais ao sul (Patagônia e Antárctica). É considerado o melhor lugar do país para avistagem de aves em termos de concentração – no Pantanal, muito maior em área, as aves ficam mais espalhadas, enquanto na Lagoa do Peixe elas estão mais agregadas.
Um ostreiro (Haematopus palliatus) entre vários trinta-réis-boreal (Sterna hirundo) na beira da praia no Parque Nacional da Lagoa do Peixe.
O que torna este parque tão atrativo às aves é a diversidade de ecossistemas num curto espaço. Há a lagoa de poucos centímetros de profundidade onde facilmente se pescam camarões e outros crustáceos, imprensada entre a Lagoa dos Patos e o Oceano Atlântico; além de dunas, da restinga litorânea e do mar. Cada um desses locais com seus atrativos específicos para diferentes espécies de aves.
Procurando informações sobre o sul do Brasil, descobrimos que seria uma boa visitar esse parque, pois estávamos na melhor época do ano para tal. Outubro é quando a tão-esperada revoada de flamingos vermelhos chega na região.
Ainda em Porto Alegre, tanto Afonso quanto Tiagón nos deram o mesmo alerta: o trecho da rodovia BR-101 que leva até o Rio Grande era conhecido como “Estrada do Inferno”, pelas condições “maravilhosas” de manutenção da buraqueira do asfalto. Como teoricamente o “Inferno” da estrada começava abaixo de Mostardas, ficamos um pouco mais tranquilos. Mal sabíamos que o asfalto esburacado seria um excelente preparo psicológico para o que viria pela frente.
Chegamos em Mostardas já de noite. Fomos procurar uma pousada para passar a noite. Ao abrir a porta do carro, um vendaval que poucas vezes senti na vida quase me carregou. Entrei na pousada e perguntei na recepção se sempre ventava assim ali na cidade, se aquele era o famoso minuano etc. A resposta da moça foi uma surpresa: “Vento? Mas hoje nem está ventando muito… Sábado passado ventou bastante, mas hoje está calminho.” Se aquilo ali era “brisa” – e eu estava sendo quase carregada pelo pré-furacão – não quero imaginar o que é um vento de verdade na cidade. Tudo na vida é realmente uma questão de perspectiva.
Mostardas é uma cidade de influência açoriana, de pouco mais de 10.000 habitantes. Muito acolhedora, agradável, com uma pracinha central e casas coloridas bem cuidadas. Os moradores andavam animados, envoltos que estavam na preparação do VIII Festival Brasileiro de Aves Migratórias, que aconteceria em poucas semanas. Todas as lojas expunham cartazes de apoio ao evento.
Na manhã seguinte, fomos na sede do IBAMA na praça central da cidade. Queríamos informações sobre o parque, sobre as condições da trilha etc. Uma funcionária nos mostrou uma maquete do parque, com a indicação das 3 trilhas principais: 2 que chegavam à praia e 1 que ia só até a margem interna da Lagoa do Peixe. Comentamos que não estávamos em 4×4, e sim em carro baixo, no que a moça respondeu: “Não tem problema, as trilhas são tranquilas”. Informados, decidimos nosso trajeto. E sem guia.
A história começou a ficar estranha pelo fato de não termos achado a 3a trilha, que pretendíamos ver primeiro. Já em Tavares, onde supostamente a tal trilha começava, voltamos para a entrada do Parque.
Todas as trilhas do Parque Nacional da Lagoa do Peixe são de areia e o risco de atolar é grande. Logo no início da estrada, passamos por uns tratores de terraplanagem – uma areia fofa e mexida ficava nas laterais. A presença dos tratores nos deu mais segurança no caso de eventuais problemas: eles poderiam nos ajudar. Não deu outra: atolamos. Os homens dos tratores vieram e em menos de 5 minutos desatolamos e continuamos nosso passeio.
Depois da Lagoa, passa-se por uma região de dunas muito ampla (eu adoro dunas), onde a sensação de “meio do nada” é enorme. Para andar na “trilha”, é preciso seguir a marca de pneus anteriores a você. Até que chegamos num vilarejo que parecia abandonado, onde uma quantidade razoável de aves estava. Estávamos há tempos sem ver o mar, vindos do Pantanal all the way down. De modo que resolvemos ir para a praia logo.
Em Tavares, cidade mais ao sul que fomos, uma estátua de flamingo dá boas-vindas aos turistas. Abaixo, o vilarejo por onde passamos na beira da praia.
A praia ali é daquelas de areia dura, retona, com uma extensão vasta. Ficamos um tempo razoável dirigindo pela praia. Parávamos, fotografávamos, andávamos, seguíamos um pouco mais adiante. Era fascinante observar o comportamento de alguns grupos de ostreiros mais irritados. Além dos albatrozes, animados por si só.
Depois de andarmos alguns quilômetros pela praia na direção norte, chegamos no Farol de Mostardas, onde há outro vilarejo, esse mais “habitado”. O vento era uma constante. De acordo com a maquete do IBAMA, daquele vilarejo sairia outra estrada de terra. E aí começou nossa confusão.
A amplitude da praia, onde se anda de carro numa areia dura vendo as famosas aves darem seus rasantes naquele mar cor de “Nescau” (definição perfeita by Tiagón).
Seguimos uma estrada que aos poucos foi ficando cada vez mais “desaparecida” na areia. Até que decidimos checar à pé onde a estrada levava: a um rio. Meia-volta, vamos pegar uma outra bifurcação. Poucos minutos depois dessa escolha, o carro encalha no alto de um morrinho de areia da estrada. A roda dianteira ficou rodando no ar sozinha e o carro assentado pela parte central em terreno arenoso, perto de um lixão. Catei ali uma bota de borracha velha, uns pedaços de geladeira (!) e algumas tábuas para servir de apoio ao macaco. Uma hora depois de muito gasto de energia, conseguimos fazer com que o carro saísse do montinho.
Decidimos que era hora de ir embora. Como a moça do IBAMA havia falado da outra trilha e havia uns postes de luz indo na direção pra dentro do continente, pensamos: se seguirmos os postes, chegamos lá. Pegamos aquela “estrada” e fomos… entramos nas dunas… as marcas de outros pneus desaparecendo – porque o vento é imperdoável e apaga qualquer rastro. A amplitude branca reinava.
Na “trilha” das dunas. Percebam a areia batida que parece dura como a da praia.
No meio de umas dunas isoladas e a aproximadamente 1km do farol, percebemos o caminho errado. Decidimos dar meia-volta e voltar pelo trecho que viemos, esquecendo a tal outra trilha que existiria. Seguimos por areia batida reta e escura como na praia. Fomos.
E ficamos.
Nesse pedaço de areia o carro diminuiu a velocidade… até que parou e… começou a afundar! André gritou: “Sai do carro agora que está tudo afundando!” Tive certeza absoluta naquele momento que estávamos perdidos. Mal tive tempo de pegar minha bolsa com o celular dentro – que não dava sinal de vida ali no meio das dunas.
As 4 rodas do carro foram afundando. Achei que estávamos em areia movediça, porque ao sair do carro, o chão ao nosso redor era a coisa mais geologicamente bizarra que eu já vi: parecia que pisávamos num colchão d’água feito de areia. O chão se movia a cada passo e se você ficasse mais tempo parado em cima, começava a afundar enquanto uma água brotava.
Atolados. Mesmo. E na água.
Apesar da situação feia, tentei manter a calma. Começamos a andar na direção do vilarejo para procurar ajuda.
1km de caminhada e chegamos numa casa onde um pescador chamado Dércio arrumava sua rede de camarão. Ele tinha um caminhãozinho na garagem. Ao pedirmos ajuda a ele, logo perguntou: “Vocês atolaram em areia seca ou molhada?” “Molhada“, respondemos. “Ah, então a gente consegue tirar bem.”
Aquela resposta nos deu um alívio imenso. Pelo menos havia solução – ou parecia ter. Dércio, um típico descendente dos Açores, pegou então um botijão de gás, umas tábuas longas e uma corda grossa. Seu filho se entusiasmou em ir junto, fato que entenderia o porquê depois. Fomos então em seu caminhão até onde o carro estava.
No caminho, ele me confirmou que não havia trilha alguma ali. Tínhamos mesmo que voltar pela trilha que entráramos na praia, a alguns quilômetros de distância pro sul. Uma dica furada da mulher do IBAMA. Enfim.
A 1ª providência que Dércio tomou foi pisotear o terreno todo ao redor do carro. Isso porque ali não era areia movediça e sim uma lagoa rasa, de uns 30 cm de profundidade no máximo, que o vento dos últimos dias havia soterrado – evento comum no Parque. Pisoteando, a água que estava embaixo da camada de areia brotava, evaporava com o sol forte, tornando o terreno um pouco mais sólido e seco. O menino adorava aquela “brincadeira” de ficar “pisa-sai-água” naquele colchão d’água natural; fazia como se estivesse num parque de diversões.
…e as crianças se divertindo naquela lagoa enterrada pela areia… Repare na foto com os 2 meninos que um deles está atolado e o outro não, porque seu pé está naquele limite estranho em que apenas afunda como colchão, mas não entra completamente. Muito bizarro.
Aí começou o trabalho de desatolamento das 4 rodas do carro. Tiramos toda a bagagem de dentro. A solução era tentar alavancar as rodas do carro com o auxílio do botijão de gás e da tábua e puxá-lo com uma corda amarrada no caminhão do Dércio. 1º problema: o carro aparentemente não tinha gancho para colocar a corda. Felizmente o manual do carro estava em mãos, e descobrimos onde colocar um gancho de metal que fica guardado junto com o macaco. Feito.
Na 1ª tentativa, o carro não moveu um milímetro sequer. Dércio achou era a corda fraca e pediu para o filho ir em casa buscar outra corda maior e mais grossa. O moleque sumiu pelas dunas e voltou com um amiguinho – para brincar também na areia movediça. Nosso “problema” era uma grande diversão para eles. Mais uma vez, tudo na vida é uma questão de perspectiva.
Com o macaco sobre uma tábua, levantamos o carro e posicionamos tábuas embaixo de cada uma das 4 rodas. A corda mais forte foi amarrada no gancho. Na tentativa de tirar o carro desta vez tanto ele quanto André aceleraram bastante… e o carro finalmente saiu da lagoa soterrada. Ufa!
No vilarejo, agradecemos muito a Dércio pela ajuda imprescindível com seus conhecimentos locais do terreno. Já eram quase 4 da tarde quando finalmente pegamos a outra trilha pela praia rumo ao asfalto esburacado, mas seguro, da BR.
Afugentados pelos atolamentos consecutivos, cansados, cheios de areia e sal, tudo que queríamos era uma boa noite de sono. Fomos de Mostardas direto até Nova Petrópolis, onde chegamos bem tarde da noite. Já na pousada, o cansaço bateu, ao mesmo tempo que o alívio. A aventura bizarra mostardense ficara definitivamente para trás. Abrimos um vinho argentino trazido de Puerto Iguazú e brindamos às bizarrices naturais que as viagens nos trazem. Tudo na vida é uma questão de perspectiva, e viajar é estar aberto a estas experiências e torná-las histórias pessoais. Tin-tim.
Tudo de bom sempre.
O “Sayber Café” de Mostardas. Para escrever emails aos amigos com as memórias dessa aventura. 🙂
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*O litoral do RS é a maior extensão contígua de areia no mundo, indo até a fronteira com o Uruguai. Apesar de ser tecnicamente uma única praia, dão-se vários nomes diferentes a cada trecho. A Praia do Cassino, ao sul do Rio Grande, tem 212km de extensão e é, pelos números, a maior praia do mundo. Mas os sites estrangeiros consideram a Praia de Cox’ Bazar, em Bangladesh, a maior – com meros 120km de extensão – basta colocar “world’s longest beach” no Google para você ver que há um domínio de outras localidades menores. Mais um exemplo no estilo “Irmão Wright x Santos Dumont”… 😛