Hoje André e eu jantamos de graça no hall do Gyeonggi Technopark, onde trabalhamos. Estava tendo uma recepção que eu não faço a menor idéia do que fosse, mas ao descer do trabalho às 7 da noite, com fome e cansada, plena sexta-feira, e ver aquele banquete enorme rolando ali, cheio de camarões e outros frutos do mar, iguarias asiáticas e quitutes, não resisti, e pedi ao mocinho responsável pelos crachás para comer um pouquinho. Ele gentilmente disse que sim, e nós nos empanturramos do bom e do melhor. Normalmente, essa cara-de-pau discarada é um comportamento inexistente entre coreanos, e como nós temos “passe livre”, ficou tudo numa boa.
Pra quem não sabe, o “passe livre” a que me refiro no título não é aquele dos jogadores de futebol, muito menos um vale-transporte que me assegure o direito de ir-e-vir gratuitamente pelo metrô de Seul. Não!
O “passe livre” é uma expressão que o André criou/se apropriou referindo-se às regalias que nós, estrangeiros com nenhuma cara de orientais, somos brindados em um país homogeneamente oriental. Nós dois já utopizamos várias teorias tentando explicar a razão do passe-livre, e entre as inúmeras hipóteses, as 3 que são mais citadas são.
1) A tradicional cordialidade oriental
Todos sabem da fama dos orientais de serem um povo cordial, paciente e tendendo à sabedoria e à filosofia tradicional. Nada mais justo que essa sabedoria inclua o tratamento cordial àqueles que não pertencem a este lado do mundo, numa tentativa de disseminar a idéia de que “aquele povo “desconhecido” pelo resto do mundo é na realidade, muito legal e interessante”… Embora a Coréia do Sul tenha uma tropa enorme de soldados americanos estacionada na Península por razões geopolíticas, fato é que os coreanos sempre tentam tratar-nos bem ao perceberem que somos estrangeiros, independente da cidadania, um reflexo talvez desta tradicional cordialidade passada por gerações de sábios e filósofos. Além do mais, é característico da cultura oriental uma dificuldade em dizer “NÃO” às pessoas ocidentais.
2) Nossa aparência ocidentalizada
É óbvio que nem eu nem o André nos parecemos orientais. Eu, com esse cabelinho herdado dos meus genes paternos vindos da África ou sei lá de onde; o André, só a altura dele já denuncia: “sou ocidental”. Acreditamos que os coreanos não esperem da gente uma atitude orientalizada, por isso são tolerantes e respeitam nosso comportamento, independente de qual seja (inclui-se aqui a cara-de-pau de Lucia Malla…). Afinal, pelo que eles sabem dos ocidentais, não fomos criados nos moldes deles e portanto, as “falhas sociais” que cometemos são explicadas por essa diferença de criação.
(Essa hipótese é reforçada pelo depoimento de algumas amigas de aparência oriental que temos aqui. Elas não são coreanas, apenas descendentes de coreanos, ou que são coreanas mas vivem em outras partes do mundo. Essas amigas narram que os demais coreanos na realidade não as tratam cordialmente, e elas acreditam que seja por causa da aparência delas. Ou seja, os coreanos esperam que se você se parece um coreano, você haja como tal, não que fale outra língua ou tente ser “diferente”. A sociedade aqui é muito conservadora em sua estrutura, a mulher tem um papel definido e o homem também. Portanto, se você é coreano e não segue esse papel, vocé sofre preconceitos, sim! Isso talvez seja uma boa discussão para um tópico futuro…)
3) Somos um casal homogêneo
Essa hipótese veio do André, e acredito que faça sentido. Ele observou que os coreanOs (homens), ao verem um ocidental ao lado de uma coreanA, lançam olhares furiosos e instintivamente agressivos ao ocidental em questão. Como se pensassem: “Você roubou minha mulher!” A competição sexual aqui parece ser acirrada, pois sinto que a pressão do casamento é muito maior que na sociedade brasileira, por exemplo. Mulher é um “valor” importante para o homem coreano, e a mulher tem que ter as características e comportamento coreanas.
(Ocidentais em geral não sabem fazer kimchi, muito menos aceitam deixar de trabalhar – e terem uma carreira profissional – para cuidar exclusivamente da família.) É muito mais raro nós vermos coreanOs com mulheres ocidentais, que o inverso.
Além do mais, o ocidental é exótico aqui nessa sociedade homogênea, está em maior número – lembre-se do exército americano estacionado aqui – e as mulheres têm uma probabilidade maior de encontrarem ocidentais aqui que o inverso. Os coreanOs sabem disso, e tentam proteger o patrimônio deles.
Entretanto, André, um homem ocidental, está sempre acompanhado de sua namorada (euzinha!), que também é ocidental. Os homens coreanos entendem que ele não é uma “ameaça”, não está à caça de uma mulher deles, e abonam André (e consequentemente eu) dessa agressividade, fúria e indiferença.
Bom, seja qual for a razão pela qual temos esse passe livre, fato é que hoje jantamos por conta e temos aproveitado bem essa regalia oriental…
Tudo de bom sempre!
P.S.
- Leia mais posts sobre a nossa vida na Coréia do Sul por três anos neste link.