Sou filha única, mas tenho vários irmãos de coração, que chamo e trato como irmãos. Boa parte são meus amigos de infância e adolescência, com quem dividi muitas horas em rodas de violão na praia ou ouvindo fitas de jazz na calçada de casa – foram eles que me apresentaram o universo de Pat Metheny, Miles Davis, Chick Corea e do gênio Hermeto Pascoal. Alguns deles, é claro, se tornaram músicos profissionais – excelentes, por sinal. O Júlio foi um deles.
“Dindinho” era um apaixonado pelos Beatles aos 13 anos, que dedicava as tardes a sua guitarra elétrica, para desespero do ouvido dos vizinhos. Excelente aluno na escola, estava sempre também enrolado com as estrepolias dos bagunceiros da sala de aula, num balanço entre “o bem e o mal” que o transformava no amigo de todas as horas de todos. No fundo, mais que isso: Júlio sempre teve desde pequeno uma sensibilidade primorosa para lidar com o próximo. A música que ouvia e tocava refletia esse grau de preocupação com a qualidade emocional de cada acorde, com a importância dada a cada afinação. Júlio nasceu pra ser músico – e o é, para orgulho da amiga que sempre torce por ele.
E hoje, meu amigo-irmão Júlio defende sua tese de Mestrado na Unicamp, em Música: “O Cantador: a música e o violão de Dori Caymmi”. Lendo a tese dele enviada por email, aprendi que não há nenhum outro trabalho acadêmico sequer analisando a obra desse que é um marco da música brasileira, e em minha opinião, ninguém melhor que Júlio para fazer essa análise, com toda sua inteligência musical, sua verve jazzística, sua percepção do mundo ao redor, sua sensibilidade amiga. Dori Caymmi com certeza ficará orgulhoso ao ver tanto primor na tese do Júlio.
Embora não seja nem de perto algo que eu entenda o mínimo, li a tese toda com atenção e carinho, e destaco abaixo dois trechos que mostram o cuidado que meu amigo teve para entender a música do gênio-ídolo:
““Migration” é um exemplo de uma peça instrumental onde a melodia se divide entre instrumentos (violão e saxofone) e vozes. Não há relação cadencial tonal entre os acordes, a não ser no final da progressão, quando surge um dominante substituto (no caso, suspenso) antes do Em. Cada acorde é tratado individualmente, com o modo lídio se sobressaindo nos acordes maiores (G e C) e o modo dórico nos acordes menores. No Bm não há a ocorrência da sexta maior para a confirmação do modo dórico. Isso se dá através do tratamento jazzístico da peça, especialmente em sua metade, quando o espaço reservado ao solo de saxofone do músico Branford Marsalis (um expoente do jazz americano contemporâneo) confirma a abordagem modal mencionada.”
“É importante notar o efeito harmônico alcançado devido à sustentação das notas, combinadas entre cordas soltas (primeira e segunda) e presas (segunda, terceira e quarta), sendo estas executadas em uma posição aguda. Esse recurso é conhecido como campanella e era muito utilizado em afinações da guitarra no período barroco. Uma definição do termo nos é dada por Vasconcelos, que descreve campanella como sendo “qualquer passagem melódica cujas notas sejam executadas em cordas diferentes, fazendo com que elas soem umas sobre as outras”. (…) Dori reaproveita na segunda versão, a mesma condução de vozes empregada no arranjo da primeira, a despeito da mudança de tonalidade, demonstrado que a idéia original não faz parte só do arranjo, mas de toda a concepção da composição. Ele utiliza mais uma vez o recurso da campanella, com uma alternância de vozes, entre cordas soltas e presas. (…) Dori, em entrevista, disse que seu intuito era simbolizar, através disso, o sino das igrejas de Minas Gerais. Curiosamente, Yates define o termo campanella como “a superposição sonora, como sinos, de notas escalares criadas através do uso otimizado de cordas soltas e da digitação sucessiva em cordas adjacentes”.“
Essa passagem em particular, eu adorei:
“Com freqüência observaremos na obra de Dori uma associação entre sons e imagens. Muitas de suas composições e arranjos buscam representar uma história, um evento ou uma personagem, real ou imaginária. “Lenda”, por exemplo, representaria a história de um casal que flerta, trocando olhares, mas separado por um rio bravio. No fim, ela vira o moinho e ele o rio.“
E a conclusão do trabalho:
“Dori Caymmi é fruto da bossa-nova, mas também de Dorival Caymmi. Ao mesmo tempo em que é apaixonado pelo jazz e pelos arranjadores e músicos norte-americanos, também é profundamente ligado às coisas do Brasil, ao Nordeste e à Bahia, a Minas Gerais e ao Rio de Janeiro. Dori ouviu Miles Davis, Gil Evans, John Coltrane, Wes Montgomery e Johnny Mandel, mas também o choro de Jacob do Bandolim, as canções praieiras de Dorival Caymmi, a bossa de Jobim e João Gilberto, o baião de Luiz Gonzaga e as canções brasileiras que tocaram nas rádios dos anos cinqüenta, além dos eruditos Villa-Lobos, Ravel e Debussy. Essa dicotomia está presente em sua obra. Na sua primeira fase, as canções com inflexões de bossa nova, se sucedem àquelas com características mais regionais. Dori, ao mesmo tempo que atravessa quatro centros tonais diferentes em “Velho Piano”, é capaz de permanecer por cinco compassos em único acorde em “Evangelho”. “Guararapes” utiliza instrumentos de percussão, com o berimbau em destaque e violão com cordas soltas, enquanto “Minha Doce Namorada” é uma bossa-nova com um densa orquestração e violão “joãogilbertiano”. Na fase americana, sua obra se modifica, em função de uma maior uniformidade nos arranjos e harmonias, bem como na execução violonística. Dori incorpora em definitivo a afinação “cego aderaldo”, tornando-se exceção o uso da afinação tradicional. Os elementos regionais e bossanovísticas são ainda perceptíveis, mas encontram-se diluídos nas canções, que agora ganham uma característica instrumental mais evidente. Dori, tão ligado à canção, em “Kicking Cans” utiliza as palavras em uma única música. Muita coisa ainda precisa ser estudada. Sua escrita para cordas, seus arranjos para outros artistas e em particular aqueles para Nana Caymmi. Pode-se notar diferenças entre os arranjos que escreve para si mesmo e os que têm outro destino. Sua terceira fase é rica nesse sentido. É quando Dori presta suas homenagens aos artistas que foram fundamentais em sua formação e também àqueles que mais admira em sua geração, suas influências e seus contemporâneos. São trabalhos ricos, sobretudo quanto à harmonia e aos arranjos. Dori consegue sofisticar a harmonia de músicas já complexas como “Desafinado” e “A Felicidade”, e criar arranjos memoráveis para músicas consagradas como “Ponta de Areia” e “Copacabana”. Essa parece ser a continuidade deste trabalho que ainda está só começando e não tem a menor pretensão em esgotar o assunto.“
Eu não entendo de Dori Caymmi, e sinceramente, ouvi poucas músicas dele. Mas depois de ler tamanha paixão e humildade na tese do meu amigo, confesso que fiquei curiosa, com aquele gostinho de quero-mais. Uma citação em particular me chamou a atenção:
“Dori ainda novo, com apenas 17 anos circulava na noite [carioca], na ânsia de ouvir, tocar e saber das novidades. Já era louco por jazz. Ouvia também muito Ravel e Debussy. Seu violão foi fruto do autodidatismo, como acontecera antes com o pai. Meninozinho pegava o violão do pai escondido, até que ganhou dele seu primeiro instrumento.“

Os dois mestres: Júlio “Dindinho” e Dori Caymmi.
Quando éramos adolescentes, sem nem saber, Júlio já tinha a mesma postura de mestre. Só lhe faltava o título. Hoje ele veio.
Parabéns, meu amigo! Seu sucesso é motivo de orgulho para mim e para seus chegados da calçada dos “vagabundos”.
Como diria “aquele” outro mestre de todos nós: Tudo de bom sempre!