por:
Lucia Malla
Animais, Arte, ArteSub, Ciência, Fotografia, Inglaterra, Prêmios, Viagens
Publicado
31/10/2006
No mês de outubro (que já está em seu último suspiro), o tema de discussão no Roda de Ciência foi “Relação entre Ciência e Arte”. Que é, aliás, uma encruzilhada tão intangível para muitos cientistas e tão necessária para o entendimento do público leigo sobre ciência. Embora particularmente tenha passado o mês inteiro viajando “a lazer”, de certa forma o motivo que me levou a Londres tem a ver exatamente com a interrelação sugerida pelo tema. Aproveito a coincidência então para pedir licença e explorar alguns aspectos pessoais que vivenciamos, questionamos, aprendemos, nos deparamos a partir do momento que André soube que havia vencido o Wildlife Photographer of the Year 2006.
Wildlife Photographer of the Year 2006 – Animal Behavior
Aliás, soubemos dessa novidade em junho, quando estávamos na Coréia. André tinha então acabado de chegar de mais uma expedição nas Ilhas Marshall. É óbvio, a alegria foi enorme, indescritível. Entretanto, a comemoração teve que ser silenciosa, devido ao embargo para a imprensa estabelecido pelo Museu Britânico. Fiquei portanto explodindo de vontade de contar pra todos. Mas não podia – que tortura.
Afinal, ao vencer uma categoria, André imediatamente concorria ao prêmio máximo, que é o Wildlife Photographer of the Year mesmo. Este prêmio só é revelado na hora da entrega dos demais prêmios. Aliás, esta alegria final terminou indo para o sueco Göran Ehlmé pela foto de uma morsa se alimentando de sedimentos numa região da Groenlândia. Göran levou 10 anos para conseguir a imagem, e é uma foto definitivamente única no mundo, do comportamento de um animal difícil por si só de ser fotografado, e pouco entendido pela ciência.
Merecido o prêmio. Embora houve controvérsias nos bastidores… Afinal, muitos não gostaram da qualidade fotográfica em si da imagem, ou seja, da arte. Nesse caso, podemos de certa forma dizer que a ciência falou mais alto na hora da decisão do júri, já que o comportamento animal foi mais relevante que a beleza artística. Comentários como “a foto é muito verde e ciano, tem áreas desfocadas em demasia, o canto superior direito é espaço morto indesejado, e se fosse qualquer outro animal ali, a foto seria considerada ruim para envio, etc.” abundaram. Aliás, essas foram as frases mais entreouvidas à boca-miúda e captadas pela minha parabólica pessoal na semana de atividades do Museu.
Ciência acima da arte?
Mas vejo por outro lado. No momento em que a ciência é preponderante num concurso de fotografia tão reconhecido mundialmente, acho que o objetivo pragmático da arte (pelo menos aquela que se pretende a tangenciar com a ciência) foi alcançado. A arte como veículo de aprendizagem da ciência: não é isso que boa parte dos cientistas esperam? Parabéns ao simpático fotógrafo, que trouxe a desconhecida etologia da morsa para as páginas do noticiário mundial.
Controvérsias do Wildlife Photographer of the Year 2006 – O Patrocinador
Voltemos ao prêmio em si. O Wildlife Photographer of the Year deste ano gerou também um outro tipo de controvérsia. Esta controvérsia, entretanto, estava muito mais relacionada à política de conservação do ambiente. Era com o patrocinador do concurso.
Percebemos indícios iniciais dessa controvérsia ao chegarmos no dia da cerimônia de premiação ao Museu de História Natural Britânico. Ao sairmos do metrô, vestidos elegantemente, nos deparamos na porta do museu com um grupo de ativistas ambientais do Friends of the Earth (alguns fantasiados de animais ameaçados de extinção) nos saudando com panfletos e frases irônicas/ácidas sobre a presença da Shell como patrocinadora do evento. Protesto pacífico, e de certa forma, com razão.
A Shell, uma empresa petrolífera, já esteve envolvida (dados do Friends of the Earth) em diversos acidentes ambientais. Acidentes estes que prejudicaram a vida selvagem de ecossistemas pristinos e de comunidades locais que dependiam desses recursos para subsistência. Uma demonstração de atitude nada ecológica. E de repente, a empresa, para tentar melhorar sua imagem, decide patrocinar o prêmio mais importante de Fotografia da Vida Selvagem. Isto mesmo, a mesma vida que ela acidentalmente ajuda a destruir ao longo do tempo de sua existência.
Contraditório, não? Até o CEO da Shell, em seu discurso de abertura da Cerimônia de Premiação, confessou estranhamento nessa dicotomia difícil de engolir. Mas, é claro, a história é mais reveladora que as desculpas ambientais do discurso dele.
Protestos
Esse foi o primeiro ano em que houve protestos contra o patrocinador do concurso. Não contra o concurso em si, que todos entendem unanimemente como uma oportunidade fundamental de divulgação da vida selvagem, acima de qualquer suspeita. E, claro, foi o primeiro ano da Shell nesse papel.
Como sabemos que o orçamento necessário para a organização de um concurso desses não é nada baixo e também sabemos que a fotografia é uma arte já menosprezada pela maioria do público e que precisa de incentivos como esse para sobreviver dignamente, fomos atrás de mais informações. Perguntamos diretamente à diretora do Museu Britânico, responsável pela organização desse concurso há mais de 20 anos. E a resposta dela nos surpreendeu deveras.
Por muitos anos no passado, o patrocínio para o evento veio da British Gas, também uma empresa petrolífera, “destruidora do ambiente”. Aparentemente, a British Gas possui uma melhor reputação frente aos grupos ambientais (Menos desastres? Mais programas de auxílio?). E por esta reputação, nos anos anteriores jamais foi cogitado protesto algum mesmo sendo também uma petrolífera a patrocinar tal evento.
A única alteração foi mesmo o nome da empresa patrocinadora. Porque a indústria do petróleo, uma das mais ricas do planeta, já auxiliava há anos a competição, e com isso amenizava sua propaganda negativa de causadora de desastres ecológicos.
E por que então os grupos ambientais estavam calados no passado, e esse ano apenas, resolveram agir? Essa pergunta ainda me incomoda, porque imagino que a resposta possa trazer à tona um double standard perigoso para os grupos ambientalistas, que tanto prezo por sua luta valiosíssima pelo bem-estar do planetinha azul e de seus habitantes. Fica o mistério.
Cerimônia de premiação
A cerimônia de premiação aconteceu numa quarta-feira, no Dinosaur Hall do Museu de História Natural de Londres. Essa sala principal do Museu estava toda modificada, com luzes vermelhas e amarelas, e uma cortina de “céu” ao fundo, para dar a sensação de universo àquele momento. No dia seguinte, revisitei o local, e nostalgicamente percebi que havia vivido um momento de sonho. Olha o contraste!
Encontro com a mídia
E na quinta de manhã, houve a abertura oficial da Exposição Fotográfica do Shell Wildlife Photographer of the Year para a imprensa. A exposição correrá por alguns países do mundo e infelizmente não virá ao Brasil.
Ficamos a manhã inteira e parte da tarde conversando com fotógrafos renomados e profissionais da National Geographic, BBC Wildlife, Getty Images, jurados do concurso… Enfim, um festival de papos agradáveis. Mas também um assunto triste em comum em quase todos: o quão irreversível pode estar a situação da natureza em nosso planeta.
Aquecimento global já é realidade
Para a maioria dos profissionais tarimbados que lidam com vida selvagem no seu dia-a-dia, são claros os indícios de que algo não vai bem nos ecossistemas do mundo inteiro. O próprio vencedor geral, Goran, nos disse que as morsas costumavam aparecer num certo mês na Groenlândia. E que de uns tempos para cá, têm vindo cada vez mais cedo, provavelmente devido (adivinhem?) ao degelo da região. Degelo este provocado pelo aquecimento global, é claro. Lamentável.
Será que ainda há como negar que o planeta está pedindo socorro? E a pergunta mais importante que todos se faziam era a mesma: como podemos agir para amenizar os percalços naturais que vêm por aí? Como será que a arte da fotografia pode auxiliar na construção de um mundo melhor, no aumento da conscientização pelo meio ambiente, na disseminação do conhecimento científico sobre o ambiente que vivemos? Como integrar arte e ciência em benefício do futuro?
Momento de admiração
Além de conversar com pessoas, nessa manhã de “encontro com a mídia” tive mais tempo para admirar melhor as fotos vencedoras desse ano. Difícil escolher qual a mais bonita, e imagino o trabalhão que os jurados tiveram para selecionar entre as 18,000 enviadas aquelas 80 que ali estavam expostas como as melhores do mundo. O cd que ganhei com todas as fotos do concurso me permite mostrar apenas 5 na internet sem pagar – e escolhi para publicar aqui as 5 que me marcaram mais (quem quiser ver as demais, dê uma passada pela galeria online do Museu, vale a pena). Ei-las abaixo.
A Namíbia de Bernard Van Dierendonck
Precisa explicar? Eu, que sonho em visitar a Namíbia exatamente por causa do deserto, delirei ao ver essa foto de Bernard Van Dierendonck, vencedora da categoria “Wild places”. Essa duna vermelha… Parece até uma pintura, não uma foto! Fantástico.
2. Clareira na floresta – Jocke Berglund
O autor dessa foto, o sueco Jocke Berglund, estava sentado na mesma mesa que a gente durante a cerimônia de premiação. Apesar das poucas palavras, ele trouxe uma forte mensagem com sua imagem vencedora da categoria “The world in our hands”. A foto é do trabalho de limpeza por caminhões de uma clareira aberta por um furacão numa floresta sueca. Vista de cima, a foto fala por si: é a esperança sob a forma de uma árvore. A foto mais tematicamente impactante da exposição, em minha opinião.
3. O olhar do leopardo – Alessandro Bee
Confesso que fiquei impressionada com a força do olhar desse leopardo já morto, virado tapete e encontrado por Alessandro Bee à venda numa loja da Tanzânia. Ela parece pedir socorro. A foto ficou em terceiro lugar da categoria “The world in our hands”.
4. Orvalho – Juhani Kosonen
Levou um tempo para eu entender o que era essa foto. Já havia conversado com o fotógrafo Juhani Kosonen e seu filho na noite de terça, num pub onde os vencedores se reuniram para o warm-up da festa, e sabia o tema da foto. Mas só depois de vê-la é que entendi a genialidade do clique: são gotas de orvalho numa janela. Algo tão simples retratado de forma tão esplêndida: merecidíssimo o primeiro lugar na categoria “Creative visions of nature”.
5. Caranguejo-côco – Jan Vermeer
Outro exemplo de simplicidade genial para revelar um comportamento. O caranguejo-côco fotografado em ação: subindo coqueiros. Mas a composição da foto é tão linda e simples que estonteia a gente. A foto é de Jan Vermeer e venceu a categoria “Animals in their environment”.
Constatação randômica: Apenas uma mulher premiada com o terceiro lugar numa categoria – sinceramente, custo a entender por quê, já que em geral mulheres tendem a ser mais pacientes, e fotografar vida selvagem requer toneladas dessa virtude. Uma das juradas com quem conversei quer incentivar mais mulheres a submeter fotos ao concurso – só não sabe ainda como. De acordo com ela, 80% das fotos submetidas são por homens. Dado interessante.
Como tudo que se preza na Inglaterra, a festa da fotografia selvagem terminou… num pub. Mais chavão britânico, impossível. Cheers!
Tudo de bom sempre.