Quando a gente pensa em África, algumas imagens vêm imediatamente à cabeça da maioria. Como leões e girafas em safaris, pessoas passando fome (infelizmente), desertos a perder de vista, entre outras. Raros são aqueles que se lembram que a África é banhada por dois oceanos (Atlântico e Índico) e dois mares (Mediterrâneo e Vermelho). O que dá a este continente uma costa extensa, com vários points de mergulho nota 10.
Localização do estado de Kwazulu-Natal na África do Sul. A principal cidade do estado é Durban. Mapa tirado deste site.
Todos os anos entre fins de maio e início de julho, um cardume de milhões de sardinhas (Sardinops sagax) aparecem na costa de Kwazulu-Natal, na África do Sul (do lado Índico), entre Durban e Port Edward. Este cardume fica a cerca de 1 km da costa, tem em média 7 quilômetros de extensão e pode chegar a 30 metros de profundidade. Uma verdadeira muralha de sardinhas, cuja migração para a costa sul-africana foi oportunamente apelidada pelos moradores locais de “o maior cardume da Terra”. O grande cardume se subdivide em cardumes menores, mas a mancha escura que indica a movimentação de tal agregação pode ser vista por medições térmicas via satélite.
Pouco se sabe sobre o mecanismo exato do por quê elas se juntam ali daquela forma. Ou mesmo de onde as sardinhas vêm. Mas sabe-se que é necessário que uma corrente de água fria venha do sul, do Cape Agulhas Bank. E chegue até ali com uma temperatura da água não maior que 21ºC. Há anos em que a água não esfria e o fenômeno simplesmente não ocorre. Afinal, sardinhas são peixes de águas frias. Não subiriam numa costa quente como a do leste da África se condições especiais não diminuíssem a temperatura da água.
Especulava-se que a presença das algas que vêm junto com a corrente fria fosse um motivo provável das sardinhas aparecerem. Mas um estudo de mais de 20 anos mostrou que não havia correlação entre a concentração de clorofila-a e a distribuição das sardinhas. Um grupo da Universidade de Kwazulu-Natal vem estudando o evento. Este grupo levanta dados oceanográficos na tentativa de entender melhor a dinâmica do Sardine Run. Quem sabe um dia até prever ao certo a data e o local onde elas aparecerão.
Mapa com a temperatura da superfície do oceano na costa de Kwazulu-Natal em junho passado. Repare na corrente de água fria que vem chegando pelo sul, que provavelmente trará as sardinhas. Imagem tirada daqui.
Enquanto o mistério não é desvendado pela ciência, as pessoas interessadas em ver o Sardine Run (entenda-se mergulhadores, pescadores e apaixonados por vida marinha em geral) aguardam. Literalmente.
Leia minha experiência de mergulho no Sardine Run.
As operadoras de mergulho em geral não colocam uma data certa para a viagem ao Sardine Run. Elas acompanham mapas de temperatura da água e updates online como os do Ocean Planet para definirem a data em cima da hora, já quando as sardinhas estão a caminho. Ou seja, é uma expedição que você organiza que vai, mas não sabe quando. Fica então esperando (em stand-by) o momento de embarcar. Há um hotline gratuito nos vilarejos de Kwazulu-Natal que informa sobre a chegada das sardinhas. Quando estas se aproximam da costa, a notícia se espalha rapidamente. O que traz turistas, pescadores e moradores para se aproveitarem, cada um a sua maneira, do espetáculo.
Que, diga-se de passagem, é impressionante. Nunca fui à África. (Update: fui em 2017. Para o Run.) Contudo sonho em assistir de perto ao Sardine Run, porque deve ser uma experiência ímpar. Todas as fotos que já vi sobre o evento são fantásticas.
As sardinhas, para se protegerem dos inúmeros predadores que aparecem naquele feeding frenzy, formam os chamados “baitballs” (bolas de isca). E elas se movimentam freneticamente fugindo dos ataques de predadores. Que são vários: tubarões, golfinhos, baleias, pássaros, peixes-espada, mola-molas, focas e quem mais estiver a fim de se alimentar de sardinhas.
É ataque por todos os lados. Uma verdadeira guerra subaquática onde os predadores se unem e o alvo comum são as sardinhas. Quem em geral as traz “para cima”, são golfinhos que “forçam” aos poucos as sardinhas a nadarem cada vez mais próximas da superfície. Uma vez que elas chegam a profundidades menores, a festa da alimentação começa. Ali, a costa índica da África do Sul (algumas vezes chega até Moçambique) passa a ter durante o Sardine Run a maior agregação de grandes predadores imaginável. Ou seja, é o melhor estúdio fotográfico submerso que pode haver no planeta.
Entretanto, o mergulho no Sardine Run é para poucos.
Em primeiro lugar, porque é muito caro.
Em segundo lugar, porque você tem que esperar o momento certo, ou seja, na prática pode chegar em Durban em maio e só sair de lá em julho, porque as sardinhas resolveram aparecer mais tarde. Ou o inverso, se planejar para junho e elas vierem em maio. Você está a mercê da natureza. Consequentemente, é necessário ter tempo para este tipo de arranjo.
Em terceiro lugar, porque o mergulho é em mar aberto, com correntes fortes, o que complica para a maioria dos mergulhadores recreacionais – é um mergulho avançado.
Em quarto lugar e mais importante, o óbvio: você é jogado no meio de uma “bola” de sardinhas que vão ser comidas por inúmeros animais maiores vindos por todos os lados, inclusive de fora da água. A probabilidade de você ser machucado no meio desse frenesi é grande, e como as sardinhas fazem um paredão escuro, a visibilidade não é das melhores. De repente você pode dar de cara com um tubarão ou foca de boca aberta, pronto pra uma mordida no baitball. Ou seja, a chance de você ser confundido com comida é elevada. Adrenalina a 1000 é pouco para descrever a “brincadeira”.
Mas, mesmo com todas estas dificuldades, os relatos que já li/ouvi de diferentes pessoas sobre a experiência de mergulhar e/ou assistir ao Sardine Run são fascinantes. É uma das milhares de peculiaridades biológicas da África que eu gostaria de um dia (quem sabe…) vivenciar. De preferência embaixo d’água. 😛
Tudo de bom sempre.
Maioridade: 18 Anos do blog Uma Malla pelo Mundo.
Começo 2021 no blog resenhando um dos livros que mais me marcou em 2020, "Slavery…
Quando pensamos em receitas para uma boa saúde e longevidade, geralmente incluímos boa dieta e…
Eis que chegamos à maioridade votante. 16 anos de blog. Muitas viagens, aventuras, reflexões e…
O ano de 2020 tem sido realmente intenso. Ou como bem disse a neozelandesa Jacinda…
Nesta maratona de resenha de livros que tenho publicado durante a pandemia, decidi escrever também…
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Amei o post viu, menina! Ainda não havia visto as fotos das sardinhas. Sensacional e assustador. Se um dia você for participar de uma expedição desta, imagino que será uma glória, pelo pouco que a conheço, imagino.
beijo, menina
adorei tudo,foto,info,e voou colocar nos meus favoritos porque viajar é comigo mesmo...........
beijos so
Outro dia eu vi um documentario na TV sobre o Sardine Run. Fiquei impressionada com as imagens, tanto de dentro quando fora da agua. Exatamente como vc falou: passaros, tubarões, golfinhos, todo mundo atacando as pobres das sardinhas.
Adorei o texto!
Eu espero sinceramente que a ciência nunca descubra qdo acontecerá esse evento, pois com certeza algum japonês fdp vai pescar esses cardumes até sua total extinção.
Mais um post maravilhoso, instrutivo e eletrizante. A sardine run é espantoso. Corri pro site do filme Wild Ocean e vibrei com o trailer.
E na verdade isto tudo está em risco devido á alteração climática pois as sardinhas com águas superiores a 22• ficam como paralisadas, aliás nos últimos 2 anos as coisas têm mudado imenso, estamos á beira do nosso abismo e nem nos apercebemos e as sardinhas mostram-nos como estamos
Mudanças climáticas são o problema mais grave da atualidade, Miguel. E afetam aspectos os mais variados da natureza. :(