Eu adoro filmes de tribunal. Não interessa sob que perspectivas eles são feitos, eu assisto a todos que posso. Toda aquela encenação de advogados, testemunhas, juízes… Acho bacana ver o sistema correr mesmo que na ficção. E mesmo que muitas vezes o sistema se demonstre quebrado e manco.
Então quando soube que o Honolulu Museum of Art estava preparando um festival de filmes de advogados, o “The first thing we do, let’s film all the laywers”, logo separei a data na minha agenda. O festival é pequeno, serão apenas 5 filmes, todos com ênfase na profissão. Hoje à tarde, assisti ao primeiro deles. E olha, que abertura de festival.
“Crime after crime” (“Crime por Crime”, em português), de Yoav Potash, é um documentário sobre Deborah Peagler, uma mulher que sofreu diversos abusos do namorado (incluindo prostituição forçada e muitas pancadas). E que, em 1982, cansada de tanto apanhar e temendo pela própria vida, levou-o a um ponto combinado de Los Angeles onde 2 membros de uma gangue o mataram. Não há provas de que ela estivesse no momento do crime no local, mas ela definitivamente o levou até lá, e isso foi o suficiente para que a justiça da Califórnia em 1983 pedisse a sentença de morte dela. Com medo e assustada, ela se declarou culpada do assassinato, e foi então sentenciada à prisão perpétua.
Até que em 2002, o estado da Califórnia passou uma lei que, na minha visão de leiga, funciona meio como um spin-off da lei Maria da Penha no Brasil, abrindo a possibilidade de se reabrirem processos e de novo julgamento para mulheres presas por crimes ocorridos em resposta à violência doméstica. Principalmente, se novas evidências forem adicionadas ao processo, com a possibilidade esperançosa de nova sentença. E é nesse âmbito que o caso de Deborah entra: ela está presa, culpada por um crime derivado de violência doméstica, e com novas evidências coletadas por uma dupla de advogados voluntários do Habeas Project. Nada mais simples de ser resolvido, certo?
Errado. Ao longo do filme, somos levados a um labirinto de burocracia e má vontade do sistema jurídico que nos desestimula a acreditar que a palavra justiça não seja mera utopia. Mostram-se os meandros e dobras da lei, com muitos cheiros podres no ar, vindos principalmente da promotoria do estado da Califórnia – mas que ninguém é inocente pra não acreditar que é algo comum na maior parte das promotorias pelo mundo. Política, política e mais política.
Entretanto, apesar da desgastante batalha legal, é a atitude positiva de Deborah frente a todos os obstáculos o que mais surpreende e inspira. E a persistência e tenacidade dos dois advogados, Nadia Costa e Joshua Safran – ironicamente, ambos advogados imobiliários, sem experiência na vara criminal. A humanidade de ambos ao lidar com este caso é tocante. Aos poucos, o caso de Deborah passa a simbolizar muito mais que as vítimas de violência doméstica. Torna-se uma batalha contra o sistema moroso, contra os erros da justiça, em que até Arnold Schwarzenegger, então governador do estado, teve seu papel.
Não vou contar o resto da história, e cada um pode fazer o próprio julgamento de seu fim lendo as diversas reviravoltas pelas páginas dos jornais da época, inclusive nas palavras do próprio diretor – antes de ver o filme, quando li a sinopse, confesso que tive dificuldades em empatizar e entender porque Potash escolheu esta história. Afinal, Deborah foi culpada do assassinato, já estava na cadeia, em quê essa história seria diferente? Depois de visto o filme, entretanto, é cristalino que a história precisava ser contada.
Após a seção no museu, quando todos ainda estavam com a cara inchada de tanto chorar, ocorreu uma discussão com advogados locais sobre o caso Deborah e o filme em si. Comentou-se que o escritório para o qual os dois advogados de Deborah trabalhavam gastou (ou melhor, “perdeu”) em despesas processuais e tempo de advogado mais de um milhão de dólares no caso. Pior: não recebeu absolutamente nada em troca, já que os advogados eram voluntários. O que por si só é inspirador, que existam pessoas em escritórios de advocacia assim. Outro comentário interessante diz respeito à lei que permitiu a revisão do caso de Deborah.
Hoje, ela existe na Califórnia e em NY. Mas há vontade política zero de aprová-la em outros estados. Afinal, quem quer “tirar da cadeia gente que já está presa e condenada”? Esse tipo de lei não ganha votos, muito menos eleição. Uma lástima total. Enquanto isso, muitas mulheres continuam sendo violentadas, agora em seu direito de justiça.
O filme é emocionante, cativante e muito inspirador. É um filme inicialmente de advogados, mas que se revela acima de tudo um filme sobre o conceito de justiça. Recomendo a todos, mas principalmente aos meus amigos advogados que ainda sonham com a existência real de justiça – provavelmente uma das palavras mais injustiçadas do dicionário e que há tantos é negada a muitos, injustamente. Vale a reflexão.
Tudo de bom sempre.
Maioridade: 18 Anos do blog Uma Malla pelo Mundo.
Começo 2021 no blog resenhando um dos livros que mais me marcou em 2020, "Slavery…
Quando pensamos em receitas para uma boa saúde e longevidade, geralmente incluímos boa dieta e…
Eis que chegamos à maioridade votante. 16 anos de blog. Muitas viagens, aventuras, reflexões e…
O ano de 2020 tem sido realmente intenso. Ou como bem disse a neozelandesa Jacinda…
Nesta maratona de resenha de livros que tenho publicado durante a pandemia, decidi escrever também…
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Oi Lucia!
Parece ser um filme muito interessante.
Creio que essa falta de vontade politica para aprovar esse tipo de lei em outros estados é evidente quando se vê o tipo de discussão que tivemos há duas semanas, sobre a nuância entre "rape" e "legitimate rape" e sobre a entrevista infeliz do Todd Akin, dizendo que o corpo da mulher tem formas de se livrar de uma possivel gravidez se ela for vítima de um "estupro legítimo".
Com esse nível de discussão é difícil alavancar alguma proposta boa...
Oi Uirá, esse episódio do Todd AKin é inacreditável, viu... e realmente, é o espelho do por quê muitas destas leis que reparam injustiças não vão pra frente.
Ótima dica! Vou assistir!