Acabou de sair agora, 10:20 am (horário do Nepal) a notinha do MountEverest.net e da Adventure Consultants: o time todo chegou ao topo do mundo. Isso significa que a cirurgiã Ana Elisa Boscarioli é a primeira mulher brasileira a chegar ao cume do Everest! Eu estava na torcida por mais essa vitória do alpinismo nacional!
Parabéns, Ana Elisa!
E para os curiosos de plantão, ontem a modelo polonesa Martyna Wojciechowska também chegou ao topo, tornando-se a primeira Playgirl a conquistar a montanha mais alta do planeta.
Tudo de bom sempre às conquistadoras do Everest.
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UPDATE: Com a lastimável morte do Vitor Negrete na montanha, o feito da brasileira Ana Elisa Boscarioli parece ter ficado meio “apagado” na mídia. Sem dúvida, muito triste que ele tenha perecido, principalmente porque conseguiu chegar ao topo, e se tivesse sobrevivido à descida teria sido o maior feito do alpinismo brasileiro de todos os tempos. Mas eu preciso fazer aqui algumas considerações sobre o assunto, do meu ponto-de-vista de não-alpinista (leiga, portanto, sujeita a escorregadelas, afinal eu não estava lá, outras coisas podem ter passado na cabeça dos alpinistas), mas leitora do assunto.
Como boa parte dos meus amigos sabem, eu acompanho alpinismo (principalmente no Himalaia) fervorosamente. Acho o montanhismo o esporte da superação do limite humano por excelência, porque ele perturba o cerne da fisiologia do nosso corpo: a oxigenação e a regulação térmica. (O mergulho também o faz, mas de forma muito mais controlada.) Nessa época do ano, entre abril e junho, a melhor para escalada principalmente no Everest, meus olhos não desgrudam de vários dispatches, lançados pelas diferentes expedições, em inúmeros sites de montanhismo. E para quem acompanha isso de perto, é “normal” (na medida do possível…) ler relatos de mortes pelas montanhas (principalmente no Himalaia), por uma questão simples: alpinismo é o esporte radical que mais mata no mundo (dados do livro de Jon Krakauer, “Eiger Dreams”). Ao decidir ser um alpinista, a pessoa já sabe que está entrando para uma galeria de poucos sobreviventes, é inerente à profissão. E é na tentativa de minimizar a própria morte que se diferencia o bom alpinista: cauteloso, tenta aprender com os mais experientes, sabe julgar e não se arrepender (muito) da decisão de dar meia-volta perto do cume de uma montanha, toma decisões convictas da sua segurança e do seu time, na medida do possível. O bom alpinista quer chegar ao cume, mas quer voltar dele vivo também. Principalmente, sabe que é na descida que a maior parte das pessoas padecem. Mas acidentes acontecem, e ninguém, por mais experiente que seja, está 100% a salvo deles.
Entretanto, percebo que existem “2 facções” não-declaradas de alpinistas: os “puristas” (que acham que a montanha deve ser escalada com o mínimo de intervenção tecnológica, afinal ela é quem manda no jogo e não o homem) e os “pragmáticos” (que querem chegar ao topo, não interessa o meio nem o abuso tecnológico utilizado, o homem domina a montanha com seus apetrechos). Os coreanos, por exemplo, são aberta e reconhecidamente pragmáticos: praticamente “carregam” seus alpinistas num esforço conjunto até o topo, contratam muitos sherpas, têm o que há de melhor em matéria de tecnologia ao seu dispor na montanha, usam oxigênio suplementar. Chegar ao cume é o esforço de uma equipe enorme. Vitor Negrete, embora nunca tenha declarado isso abertamente, parecia ser mais um purista em seu comportamento, no que ficava entendido pelas suas palavras no seu site e nas entrevistas que dava. Tudo bem, até aí Reinhold Messner, o maior montanhista de todos os tempos, também é um purista.
Em 2005, Vitor chegou ao cume, utilizando oxigênio suplementar, numa expedição que a princípio era para ser sem oxigênio. Por inúmeras razões, os puristas defendem que o uso de oxigênio suplementar ofusca o “brilho” da conquista – mas é fundamental em expedições comerciais, onde a pessoa (o “cliente”) paga para ser levada ao cume por guias experientes – foi numa expedição dessas que a Ana Elisa foi, e sinceramente, no meu ponto de vista, tem muito mérito também, porque é a realização de um sonho chegar ao cume, e ela conseguiu. Mesmo com todo o aparato tecnológico, chegar ao cume do Everest ainda é um dos maiores desafios humanos existentes: a região é inóspita, respira-se um ar que contém cerca de 30% do oxigênio que ao nível do mar temos, é estupidamente frio; e aqueles que chegam vencem tudo isso, independente de como chegaram lá. Em geral, os puristas, quando estão contratados como guias, também utilizam oxigênio, mesmo que isso não seja o que eles fariam se estivessem por conta própria.
Em 2006, Vitor Negrete e seu companheiro Rodrigo voltaram ao Everest para mais uma vez tentarem chegar ao topo sem oxigênio, numa expedição com outros alpinistas (é comum várias expedições independentes se juntarem para dividir a taxa paga ao governo que “libera” a escalada naquela temporada, taxa esta que é bastante salgada – afinal o Tibet e o Nepal, nações economicamente fracas, ganham parte do seu dinheiro nessa época do ano, com esses “permits”. Eles sabem que têm uma galinha dos ovos de ouro em casa, chamada Himalaia.). Vitor estava na face do Tibet, a menos movimentada, como em 2005. No grupo em que ele estava, há alguns dias, um britânico morreu escalando, um malaio teve congelamento dos dedos, e para terminar a maré de azar, no acampamento 2 deles, roubaram várias comidas e equipamentos – eu ainda comentei aqui em casa que nem na região mais inóspita do Everest mais as pessoas estão livres de assaltos, um absurdo.
Numa expedição que já havia apresentado todos esses problemas, com o companheiro Rodrigo se recuperando no acampamento-base, e com a janela de oportunidade perfeita (várias outras expedições chegaram ao cume nessa semana que passou), Vitor provavelmente percebeu que era a hora dele tentar também. E foi. Os sites de montanhismo e demais envolvidos no mundo do alpinismo já estão “acostumados” a esses arroubos da chamada “febre do cume” que muitos alpinistas têm, então apenas noticiaram que ele estava indo sem oxigênio, sem sherpa (o porquê do sherpa não ter ido ainda é um tanto obscuro, visto que os sherpas sempre acompanham seus alpinistas), sem rádio para comunicação (suas pilhas tinham acabado), e do acampamento 3 direto (o que dá umas boas 20 horas pelo menos de escalada incessante até o cume). Ninguém falou isso, é claro, mas ao ler tal notícia, numa expedição já tão cheia de acontecimentos prévios, o que fica nas entrelinhas é: Vitor parecia estar se engajando numa tentativa suicida. Mas, caso fosse bem-sucedido, tornaria-se um feito inesquecível. E só o próprio Vitor poderia julgar e decidir de que lado dessa aposta ele colocaria suas fichas.
Muito me admira que ele tenha chegado ao topo E conseguido voltar ao acampamento 3 nas condições em que estava, sozinho, sem muita água ou comida nem oxigênio, com o peso dos eventos anteriores da semana nas costas. Os sites de montanhismo soltaram notinhas sobre a morte dele, mas já estão todos tão “acostumados” aos perigos do esporte, que nada muito além disso foi noticiado – porque ele foi mais um número nessa temporada, infelizmente. A mídia brasileira (se bem me lembro de quando Mozart Catão morreu no Aconcágua) deve estar remoendo isso deveras, o que é uma lástima. Para a família de Vitor, ele jamais será um número nas estatísticas. A família dele merece respeito, provavelmente sabem de todos esses perigos e nuances inerentes ao esporte e sabem que, para um alpinista (principalmente um purista), a montanha é a vida dele. Chegar ao topo do mundo é vencer, e ele pereceu como um lutador de um sonho maior.
Minhas sinceras condolências à família de Vitor Negrete.