Educação

Perguntas da vida

Dia 03 de setembro, ontem, foi dia do Biólogo. Eu sou bióloga. Eu esqueci da data – a Alline que me lembrou. Vergonhoso esse esquecimento. Mas talvez reflita um pouco minha reticência com tantas datas comemorativas. Elas existem como pausas de um ano para reflexões, e olhando sob essa perspectiva, há muita coisa a refletir no caminho que trilhei da profissão que escolhi. Muita coisa ainda a perguntar nesta vida de bióloga.

Sobre a Biologia

De maneira bem simplificada, biologia é o estudo da vida. Qualquer vida. Parece super-simples de entender, mas basta você rebater com a pergunta: “E o que é vida?” para a confusão começar. Quando eu estava na escola primária, aprendi que ser vivo é tudo que “nasce, cresce, reproduz, envelhece e morre”. Mais tarde, uma resposta mais elaborada e não menos incompleta apareceu. Um ser vivo passou a ser aquele que:

  • É composto por uma célula, pelo menos;
  • É formado por compostos orgânicos como proteínas, ácidos nucléicos, carboidratos e lipídios;
  • Mantém-se em equilíbrio homeostático por um período;
  • Possui um metabolismo de consumo, transformação e gasto de energia e matéria, além de uma forma de excretar o que é desnecessário à sobrevivência;
  • Sua espécie evoluirá.

Parênteses

Repare que nessa definição, os vírus e príons, meros agentes infectantes que não têm uma célula delimitada, poderiam ser descartados do mundo “vivo”. É claro que não o são, portanto, a definição teve que crescer um pouquinho para abrigar esses parasitas moleculares. Nada que bons virologistas não dêem jeito. E a definição de vida hoje inclui tudo, de príon a nós, humanos. Alguns ainda mais simplistas dizem que vida é tudo aquilo que está “após a concepção e antes da morte”. Essa visão não me satisfaz, porque nesse caso, uma estrela também pode ser vida, né não?

Organização da vida

Para chegar nessa compilação do que é um ser vivo, tenha certeza, muitas perguntas foram elaboradas, bem ou mal, por diversos cientistas. Muitas reuniões, congressos, discussões. Muitas questões. A vida não é tão simples assim que caiba numa definição só tão fácil.

Num curso de biologia normal, aprendemos que o estudo da vida pode ser feito em vários níveis: desde moléculas de uma única célula até populações inteiras de animais e plantas. Podemos estudar suas funções. Estudar as interações que os indivíduos fazem uns com os outros, espécies diferentes ou não. Podemos estudar suas características básicas, anatômicas. E mais um sem-fim de campos, para todos os gostos e sabores. Mas aprendemos algo mais valioso ainda num curso de ciência, que não está bem delineado no currículo. Não é uma disciplina que vale A, B ou C. Eu explico com calma.

Bióloga desde criança

Desde criança eu adoro ciências.

Com meus amiguinhos de rua na infância, tínhamos um “cemitério” no jardim do prédio, onde colocávamos todos os insetos que achávamos mortos, enterrávamos, e depois retirávamos de lá para “examinar”. O que teria acontecido com o bicho depois de uma semana enterrado? Exumação de insetos – poderia eu ter sido uma CSI?

Além disso, eu morava na beira de uma praia. Todo mês de dezembro, tinham botos (pelo menos a gente achava que era boto…) que passavam por lá. Peixes, ondas e areia fizeram parte fundamental da minha infância. Lembro-me claramente de uma vez que uma baleia encalhou na praia. Uma multidão de gente começou a esfaquear e cortar pedaços da carne para consumir em casa – eram tempos menos ecológicos, definitivamente. Mas o que eu me perguntava aos 4 anos, vendo aquela cena, era: “por que será que ela encalhou aqui?” Ah, a curiosidade infantil…

Na escola

Mas aí chegou a sexta série. E com ela o estudo da categorização das espécies do mundo animal. E foi nessa série que eu me apaixonei pela vida. “Como surgiram os jacarés?” Lembro-me de perguntar isso inúmeras vezes ao meu professor de ciências, que sempre me enrolava com uma resposta light com receio de me confundir mais ainda. Afinal, eu era uma criança.

Os anos foram passando. Já no segundo grau, num daqueles testes vocacionais típicos de adolescência baratinada, meu resultado deu então de cabo a rabo, profissões da área biológica. E eu já estava mais que certa da carreira a seguir, muito antes do teste. Na verdade, lembro-me de uns dias antes ter procurado – em vão – em revistas algo que dissesse como responder a testes vocacionais de forma a darem o resultado que a gente quer. Eu não queria ver estampado no meu teste vocacional algo como “historiadora” ou “artista plástica” de jeito nenhum. Porque na minha ingênua cabeça infantil, achava que o resultado do teste vocacional era definitivo. Ele ia portanto fazer pressão na minha cabeça. Era ele que mandava em mim, e não eu nele – quanta bobeira. Mas acho que respondi “direitinho”, porque lá estava no meu resultado: “bióloga” ou “oceanógrafa”. Ufa.

O vestibular para Biologia

Estudei muito pro vestibular de Biologia. Muitas pessoas me perguntavam por que eu, que era “tão esforçada, tinha tanto potencial” (quanta afirmação vazia…) não fazia logo vestibular para Medicina. Na época, eu dizia contudo que não gostava de lidar com gente doente, o que em parte é verdade dado meu coração de manteiga. Mas no fundinho lá dentro, eu sabia que a Medicina não ia satisfazer minha curiosidade intrínseca por todos os aspectos da vida, não só a humana. Fiz então prova para Biologia na Unicamp, na UFRJ e em Viçosa (MG). Meu sonho era a Unicamp e seu curso com ênfase na área molecular – sim, naquela época eu já tinha me caído de amores pelo DNA.

A tristeza se abateu em mim quando saiu o resultado e eu não havia passado. Chorei muito, muito, por dias e dias. Mas as outras provas vieram, e eu as fiz (meio sem esperanças, mas fiz). Passei nas 2. Podia escolher entre o Rio e Minas – e fiquei com Minas, pela tranquilidade da cidade, pelo novo ambiente, pela aventura do desconhecido, desde sempre na veia. Pelas perguntas que eu fazia a mim mesma em nome do conhecimento de uma nova vida.

Na faculdade de Biologia

O campus que me abrigou por 5 anos: Universidade Federal de Viçosa. O início de uma caminhada pelas perguntas da vida.

Eu tinha 17 anos, e fui morar sozinha longe de casa numa cidade que eu não conhecia nem nunca tinha ido antes. Por sorte, no primeiro dia de aula, apareceu um amigo meu de longa data na mesma turma, o Rafaelo Galvão, o que me deu um pouco mais de segurança para enfrentar a nova empreitada da vida. (Ele havia estudado comigo desde a primeira série primária, e continuamos estudando juntos na faculdade, até a colação de grau. Hoje, ironicamente, ele também é um biólogo molecular como eu – só que ele estuda plantas.) Tudo era novo, um grande desafio.

Mas foi quando eu comecei a visitar os laboratórios da universidade, ter aulas mais profundas de todas as amplitudes que o estudo da vida engloba, ter contato com professores que mais indagavam que respondiam, que percebi que eu tinha realmente nascido para ter uma vida de bióloga. Não cabia em mim outra profissão: perguntador profissional.

Aprender a perguntar

O aprendizado dos mecanismos que definem o que é a VIDA é simplesmente encantador. Mas mais encantadora ainda é a oportunidade que temos de aprender a perguntar. Tudo, para todos. A atividade exclusivamente humana chamada ciência é moldada a partir de perguntas. Einstein (?) dizia que “as perguntas mais difíceis de responder são as mais simples” – e é verdade. “O que é vida?” é um bom exemplo. E tantas outras. Perguntar só se aprende perguntando. Questionar, questionar. Exercer um ceticismo contínuo, buscar as informações da forma mais clara possível, sem vergonha mesmo, sem medo de errar. Investigar as referências, analisar com lógica. Perguntar, perguntar.

Eu sempre me questionei muito, sobre tudo e mais um pouco. E perguntava aos meus pais, amigos, professores, que tinham que aguentar todos os meus “por quês” com uma paciência de anjo. Mas foi na faculdade de biologia que aprendi que a pergunta enriquecedora é aquela que te possibilita outro questionamento na resposta. Um aprendizado que carreguei comigo para todos os aspectos da minha vivência.

Vida de bióloga

Hoje, após um diploma debaixo do braço, uma pós-graduação difícil e muitas perguntas intrigantes, eu percebo que a vida de bióloga é uma árdua profissão de 24h/dia, 7 dias/semana, 365 dias/ano. A vida, nosso objeto de estudo, acontece a todo momento, naturalmente, e a cada um desses momentos, ela imprime uma nova perspectiva, um novo fato é adicionado, uma nova experiência é compartilhada, um novo aspecto surge. E uma nova pergunta emerge. E eis que para mim a carreira e a vida de bióloga envolve esse contínuo buscar da próxima pergunta que nos deixará embasbacados com a maravilha que é viver.

Tudo de bom sempre para nós, biólogos, eternos perguntadores da vida natural.

Lucia Malla

Uma Malla pelo mundo.

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Ver Comentários

  • Comentários que estavam neste post quando ainda hospedado no blogspot:
    Olá, Lu! A biologia era a única matéria de exatas q eu gostava, pois tb tive meu ´"laboratório de insetos" no quintal de casa....rssss.Mas a paixão por escrever falou mais alto, mas como vc tb sou perguntadora profissional, daquelas q falam : - Pq não, não é resposta! Tanto q aprendi q mtas vezes, a resposta está na própria pergunta, como no post passado, fiz o questionamento:Quem é o culpado? Não era bem uma pergunta...mas um chamamento pra fazer algo, pois culpado tb é aquele q fica inerte vendo o "circo pegar fogo". Sempre achei o biólogo um ser meio mágico, pois lida com a vida....bela profissão.Parabéns pelo dia e pelo post! Bjinhos.
    Manu | Homepage | 09.04.05 - 11:27 pm | #
    ************
    Neste final de domingo, ler seu depoimento me animou mais ainda a começar a segunda-feira: buscar, procurar, perguntar, duvidar das verdades estabelecidas... se na sua profissão isso é um mandamento, na minha -psiquiatria/psicanálise- é como oxigênio.
    Cláudio Costa | Homepage | 09.05.05 - 9:26 am | #
    ************
    Háháháhá... Que hilário! Eu, BIÓLOGA, descobri o seu blog beeeem num dia de post "dia dos biólogos" (que por sinal, eu também tinha me esquecido).
    Penso tudo tim-tim-por-tim-tim como você. Gostei do termo "perguntadora profissional". Veste direitinho!
    Um dia a professora do prezinho (!!! 5 aninhos) da minha filha veio falar comigo que queria dar uma aula de ciências para a garotada e por isso queria saber direitinho a definição de "o que é vida?" pra não correr o risco de falar nenhuma besteira... Respondi, simplesmente:
    --Se você quer lhes explicar o que é vida, pergunte pra qualquer pessoa. Menos pra um biólogo! Eu acho que eles ainda não chegaram num consenso... háháháhá!
    Ah, sim! o teste vocacional. Também fiz. Não um, vários; aliás, continuo fazendo-os até hoje...
    Mas ao contrário de você, ainda continuo esperando (também ingenuamente hehehe) que ele me traga uma resposta definitiva, que "mande em mim"...
    O resultado? Sempre sempre sempre foram os mesmos: você tem tendência MUITO FORTE para as áreas de biologia (e todas as profissões da área são aqui citadas), ou de humanas (e mais uma lista imensa), ou artes (e todas da área aqui também). E uma tendência MODERADA para a área de exatas (e todas as profissões RESTANTES incluídas aqui...) Graaaaaaaaaande ajuda!
    ...se você descobrir como se burla o teste, me conte! háháháhá
    cynthia yu | 09.05.05 - 2:27 pm | #
    ************
    Lucia, que lindo! Olha, ser bióloga pra você é isso porque você ama a profissão. E eu acho que isso é ser uma boa bióloga.
    Esse amor é muito legal e, infelizmente, é raro.
    Beijo,
    Mônica.
    Mônica | Homepage | 09.07.05 - 9:33 am | #
    ************
    Adorava decorar a partes das células, fazer maquetes delas com massinha de modelar. Mas quando chegou a parte do DNA, achei a biologia tão díficil... Mas o que eu mais gosto são as pequisas com animais. Não as que matam, mas as que ajudam a preserva-los!
    Abs
    Maitê | Homepage | 09.07.05 - 12:38 pm | #
    ************
    Manu, obrigadinha! Perguntar eh uma boa maneira de refletir, mesmo! Eh bom nunca pararmos de perguntar nada. Teve duvida? Pergunte. Eh a unica alternativa, neh?
    Claudio, e sem oxigenio, como respirar a sabedoria?
    Cynthia, seja bem-vinda a este bloguinho. Nossa, q depoimento. Fato eh q eu ainda nao sei como burlar o teste vocacional, ehehheheheh!! Serah q um dia aprenderei?
    Monica, obrigada. Raras sao suas palavras...
    Maiteh, as pesquisas vislumbrando conservacao sao necessarias, muitas vezes urgente. Seria bom se os financiadores da ciencia prestassem mais atencao a essa necessidade...
    Um beijo a todos!
    Lucia Malla | Homepage | 09.07.05 - 2:50 pm | #
    ************
    dra biologa.. alem dos parabens atrasados pelo seu dia...
    tenho uma dúvida q me corroi: seria vc melhor escritora do que bióloga??? dae q eu fiquei lendo seus posts e fiquei analisando e fiquei..ops... cheguei a uma conclusào: vc é uma excelente escritora de assuntos biológicos!!!hehehehe!!! Na verdade , seus textos são apaixonantes porque vc é uma apaixonada pelo que faz né??? Nao acha que eu mereço um donut??? hehehehe
    brincando, brincando, seus textos revelam o amor que vai dentro de vc e se espalha pelo mundo, nos seus olhos de bióloga!! SOrte desse tal André viu???
    muitos beijos
    Lulu
    luluzita | Homepage | 09.09.05 - 11:46 am | #
    ************
    Oi Mallinha,
    muito legal o seu post do nosso dia do biologo... Ja te falei que ultimamente vc e sua eterna paixao pela biologia tem me inspirado muito nessa reta final do meu doutorado, ne? Tenho andado a procura da Cynthia da minha infancia, que colecionava "Joaninhas" e nao tinha medo de bicho nenhum. Acho que ela anda meio entedeada com a biologa "molecular" que eu me tornei
    Foi nesse post tambem que eu achei o link para a foto sua e do Lucio no meu casorio: hehehehe "massa, massa".
    bjao
    Cynthia | 09.13.05 - 7:32 am | #
    ************
    Dra. Luluzita, fiquei emocionada com seu comentario. Merece mais q um donut!
    Cynthia Maria!!! Vc por aqui, q honra!!! Aquela foto eh do seu casamento mesmo... quando olho pra ela, me dah uma saudade daqueles momentos com todos ali...
    Q bom q eu ando reforcando seu lado biologico. Nao desanime, ainda mais agora na reta final do doutorado. As moleculas sao lindas! Alias, sao "massa, massa"!
    Lembre-se do Derg: jamaaaaaaais desanimarei!
    Beijos as duas amigas, do fundo do coracao!
    Lucia Malla | Homepage | 09.13.05 - 2:37 pm | #

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Lucia Malla

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