Meme científico: minha bioinfância

O Carlos Hotta me convocou para uma raridade na blogosfera brasileira: um meme científico. Topei, é claro. A regra fluida da brincadeira:

“Gostaria de convidar os autores de blogs de ciência a descreverem algum acontecimento ou pessoa em especial que os levaram a se dedicar à ciência.”

Não tenho dúvida alguma sobre a pessoa que me influenciou a trabalhar com ciência: meu professor de Ciências da 6a série, Ademar Caliman. Sua paixão pela profissão me inspirou. Caliman com sua paciência plena entendeu a minha insistência na estrutura do DNA – eu tinha 11 anos e aquela molécula era o meu sentido da vida. Foi ele o responsável por atiçar minha curiosidade em genética. Mais: Caliman fazia questão de parar uma aula de zoologia para comentar sobre desmatamento e conservação ambiental, discussão que eu abraçava com todo fervor. Meus cadernos de escola eram cheios de rabiscos em caneta verde de frases ecológicas do tipo: “Verde é vida, Vida é você. Preserve-se.” A ele, devo o despertar do conhecimento biológico em toda a sua amplitude, com respeito pela dignidade da vida que pulsa desde vírus até os mais complexos organismos, e principalmente pela intrigante viagem que a biologia é.

Entretanto, buscando as memórias empoeiradas no fundo do baú neuronal, concluo que Caliman teve uma função enzimática: ele catalisou a minha escolha, que já estava feita em meu subconsciente muito antes.

Foi um evento puntual que instigou (e sacramentou) a biologia para mim. Tinha então 4 anos e morava em frente à praia de Vila Velha (ES) – na época apenas um vilarejo de pescadores. O dia estava chuvoso, cinza, e chega a notícia “quente”: uma baleia havia encalhado na praia durante a noite. Uma jubarte provavelmente em rota para Abrolhos. Em cidade pequena, como vocês sabem, tudo vira um evento. Meu pai e eu então corremos para a praia, na esperança de ver de perto um bicho tão grande vivo e participar daquela “festa”, estar por dentro do que estava acontecendo, como ela seria devolvida ao mar, etc. Para nossa decepção, quando chegamos perto da baleia, tudo que eu via era um rio vermelho. Sangue para todo lado, várias pessoas munidas de facão em cima da baleia, rasgando o animal em pedaços enormes, intencionadas em garantir o almoço e a janta de muitos dias, quem sabe até ganhar uns trocados com tanta carne. Uma camada de gordura saltava a cada facada, sendo despedaçada e colocada em baldes, tupperwares, cestas – cena que me é ainda hoje clara na mente. O “espetáculo” beirava a carnificina. A baleia mal morrera e já estava toda estraçalhada. Pior: a grande preocupação das pessoas era com o fedor que ela deixaria se ficasse ali, naquele recanto da praia. “Então, temos que fazê-la desaparecer”, essa era a lógica local.

Mas na minha cabeça de criança, tudo que eu via naquele dia cinza e vermelho na praia era um animal indefeso. Por que encalhara ali? Foi a primeira vez que recordo “filosofar” (dentro dos limites cabíveis a uma criança de 4 anos) em termos da nossa pequenez no mundo. Lembro de repudiar aquelas pessoas e seus facões e todo aquele sangue sujando a água da praia. Não chorei, mas profundamente não compreendia toda a voracidade daquelas pessoas. Fiquei traumatizada – a ponto desse dia constar cristalino em minhas memórias, como se tivesse ocorrido ontem. E confesso que foi ali, em meio ao mar de sangue de baleia, que provavelmente surgiu a minha vontade de abraçar o mundo natural e o que de maravilhoso ele tem. Eu queria entender a vida e defendê-la para que aquela cena não se repetisse. (Lição paralela: nunca subestime o que uma criança presencia. Pode definir seu futuro.)

Fui crescendo, e sempre envolta em “viagens” ambientais. A praia era meu segundo lar. Aprendi sobre o vai-e-vém das ondas, queria sempre brincar com as plantas rasteiras da areia e os guruçás da beiradinha do mar. Fazia experimentos infantis cortando folhas para ver quanto tempo elas rebrotavam. Intrigava-me a força das correntes em dias de ressaca. Construía piscinas de areia na beiradinha só pra ver o mar destruir, assimilando que a força natural era muito mais poderosa que a minha vontade de brincar. Aprendi a ter respeito pelo mar. Fiz com os amiguinhos da rua um cemitério de insetos – enterrávamos cada inseto que matávamos ou achávamos morto com um ritual biológico, entregando-o “aos micróbios para sempre”. Com 6 anos, essa era minha diversão.

Relembrando hoje essas memórias, senti saudade do ser inocente que fui. Porque quando criança e adolescente, os problemas parecem todos solucionáveis, e temos esperança sempre de que haverá uma alternativa boa para todos. A gente não tem o cinismo com os problemas do mundo que os 30 anos te dão.

Apesar de tudo, cada vez que me deparo com um problema científico novo, sei que ainda existe um brilho no olhar que me estimula a querer entender mais da vida, que me faz voltar às minhas divagações de criança e me mostra um mundo intrigante, desconhecido, com tanto potencial de ser melhor do que já foi. É esse brilho que eu me esforço para nunca deixar se apagar, porque ele me conecta com meus ideais mais pueris, com o que eu fui e com o que serei. É ele que me faz ser bióloga desde menina, estudiosa da vida no sentido mais puro que se pode imaginar.

Meme científico - minha bioinfância

Tudo de bom sempre.

*E eu passo esse meme para as companheiras de Roda de Ciência, Maria e Silvia, dupla dinâmica com quem almoçarei hoje. 🙂



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