O processo de metamorfose de Praga

Hoje, 15 de março, começam as discussões no Clube de Leituras do blog LLL, via fórum. É o segundo round – no primeiro o russo Dostoiévsky reinou absoluto – e dessa vez, os livros de discussão foram “O Processo” e “A Metamorfose”, ambos de Franz Kafka, autor tcheco.

Eu tenho poucas coisas a dizer sobre Kafka em si: quando estive em Praga visitei a casa-museu em que ele viveu por um período de sua vida neurótica; e quem esteve lá, na casa azul de número 22 do Beco do Ouro, consegue talvez entender um pouco a razão de toda a angústia que ele passa nesses dois romances. Sua casa era um cubículo onde uma pessoa de estatura mediana não consegue ficar em pé – o pé-direito é extremamente baixo. Dentro de casa, o mínimo para sobrevivência, mas com sinceridade, estive poucas vezes em ambiente mais claustrofóbico que aquele. Talvez uma solitária de prisão de segurança máxima de filmes seja o mais próximo daquele quartinho. Não consegui permanecer por mais de 1 minuto no lugar, me senti nervosa, sufocada.

E se uma pessoa sobrevivia ali (recuso-me a dizer vivia, ele apenas sobrevivia), realmente, ele deveria se sentir uma barata como o personagem de “A metamorfose”. Kafka, o neurótico barata. Freud explicaria, com certeza (ou tentaria, pelo menos).

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Poucos livros de ficção me impressionaram tanto quanto “O Processo”. Li em 1993, numa edição do Círculo do Livro que existia na biblioteca da faculdade. Não o reli para essa análise, portanto consolido nessas linhas o que ficou em meus neurônios depois de tanto tempo. O que posso dizer é que toda a história de Joseph K., e a angústia que ele sofre, sem ao menos saber do que está sendo acusado… aquela situação indescritível de impotência perante a lei, a justiça e principalmente a consciência. Por mais que vasculhasse, K. não encontra e não encontrou o motivo de sua culpa. E só a angústia da procura já me deixaram louca por uns bons momentos degustando o livro. A maneira como Kafka carrega a história pra um desfecho (?), sua aparente inocência de palavras e principalmente, as cenas em que Joseph K. está correndo pelas ruas (será de Praga? Não lembro) fugindo… de quê? De quem? Da angústia de não saber. E vale aquela afirmação: mais vale uma verdade dolorosa do que uma mentira bem-feita. Será mesmo? Kafka explora isso, de forma genial, sublime.

Semi-decepcionei-me com “A metamorfose”, que li uns 6 meses depois de “O Processo”. Como essa é sem dúvida a metáfora mais conhecida de Kafka (o homem que se transforma em barata da noite pro dia), li o livro na esperança de uma grandiosidade hollywoodiana inexistente. (Como eu sou ingênua pra leitura às vezes…) Não veio, é claro. Apenas a mesma angústia, dessa vez nojentamente maior porque envolvia esse inseto horrendo ao qual eu tenho pânico. Confesso que à época cheguei a ter pesadelo com uma mistura de metamorfose com o filme “A mosca”: sonhei que tinha dado à luz a uma larva e que ela corria atrás de mim como barata. Argh só de lembrar!

E talvez o mais angustiante de tudo que Kafka mostra nos dois livros é a irreversibilidade da situação, é a nossa impotência como leitor que torce pro momento em que o personagem vai se beliscar e ver que está sonhando – não, esse momento nunca chega. E pra falar a verdade, o personagem principal em ambos os livros é meramente ilustrativo. Não interessa nome, idade, nada. O que interessa é o fato, a angústia, a alucinação real com que aquela mente se confronta. O que interessa é sua fraqueza intrínseca como ser humano.

Acho que, de certa forma viajante transcendental, Kafka deve ter sido, sem saber, o primeiro paciente de Freud.

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Vista da cidade de Praga hoje, e o bar que eu mais curti ir na Europa (por razões óbvias): onde mais no planeta você pode escolher no menu não só a bebida como a vidraria de laboratório em que vai querer tomar sua bebida? Esse é o mote do bar de estudantes “Alchemy”, um lugar escondidésimo na periferia de Praga. Na foto, eu e minha proveta de 1L de cerveja de cereja.

Praga é uma cidade que não merece o nome que tem – pelo menos em português. Já foi Cortina de Ferro, e das pesadas. A herança comunista ainda está lá, agora apenas dando charme ao local. De qualquer forma, Praga literal só se for de cultura hoje em dia.

Tive a imensa sorte de conhecer previamente a Zuzka, uma amiga tcheca que me acomodou nos dormitórios da universidade e me ciceroneou pela Praga turística e pela Praga dos tchecos, durante minha estadia por lá em 1997. A visita foi a mais inusitada de toda a Europa, pois vivi Praga como um morador da região – uma estudante, pra ser mais sincera. Como turista-chavão, andei pelas ruas da Cidade Velha, visitei o Castelo de Praga, admirei o Museu Nacional, botei um pé em cada lado do meridiano que corta a cidade na praça central, vi o Relógio Astronômico maravilhoso mostrando rotação da lua, estrelas e afins, cruzei a Ponte Charles e seus mil e um artistas de rua, e principalmente, aprendi a falar a famosa frase sem vogais que só em tcheco existe:

Strc prst skrz krk. (“Ponha seu dedo na garganta” – é o significado. No primeiro C tem um circunflexo invertido, que o meu teclado romano-coreano me permite esquecer.)

Como “tcheca do Paraguai”, fomos numa casa de chá numa ruela que jamais lembrarei como chegar de novo, onde era necessário uma senha em tcheco para entrar – nesse lugar, minha amiga me recomendou não abrir a boca em momento algum, pois se eles percebessem que uma estrangeira estava ali, poderiam nos expulsar. O local era um antigo reduto de reuniões da esquerda contrária à opressão do regime comunista, e como havia pouco tempo o regime tinha se esfacelado, muitas pessoas continuaram se reunindo da mesma forma, com senha pra entrar, e o lugar virou algo meio mitológico entre a juventude praguense. Fotos desse lugar nem pensar – pra que fotos quando a memória pode ser nossa melhor máquina em alguns momentos? Praga era então pra mim essa transição de socialismo para um regime novo, essa juventude esperançosa de mudança. Praga, para as pessoas que frequentavam aquela casa de chá, era uma metamorfose não-kafkaniana, nada angustiante.

Na Ponte Charles com Zuzka, e o fatídico e surreal submarino amarelo navegando no Rio Vltava.

E eu tinha lido em algum guia que existia um “John Lennon Wall” que era um local de protesto ainda sob a égide do comunismo: o muro era branco e alguém pichou o rosto de John Lennon como ícone do “sonho eterno da mudança”. Obviamente, a polícia apagou a pintura, mas algum revoltado voltou e pintou de novo. Sucessivas vezes a mesma ladainha aconteceu, até que após a queda do regime socialista, pintaram o rosto de John Lennon e deixaram de vez. Hoje é ponto turístico. Não é nada de mais, apenas um escondido muro pichado, mas com uma simbologia interessante. Eu encafifei que tinha que ir ver esse muro, e a Zuzka, com relutância, aceitou. Ok, qual a surpresa? Após ver o muro, tirar fotos, etc. fomos andar na beira do Rio Vltava (ou Moldávia, em português) para cortar caminho pra um outro lugar turístico, e no rio tinha um submarino amarelo servindo como propaganda para uma festa que ia haver na cidade. Um submarino amarelo perto do muro John Lennon: quer coincidência mais conveniente para uma razoável fã dos Beatles? Surrealidades da caminhada.

Deixei Praga com a estranha sensação de que lá tinha vivido um tempo – e eu só ficara 3 dias! Mas foram dias intensos, acompanhada de uma guia local supimpa. Pude retribuir a gentileza de Zuzka quando ela e o namorado foram ao Brasil mochilar. Alojei-os em minha casa em São Paulo e fiz a mesma coisa com ela: levei-a para a São Paulo dos brasileiros, aquela fora da rota do Frommer’s, a desconhecida pelos gringos e cheia de vida enraizada tupiniquim.

E São Paulo pôde se metamorfosear em Praga por alguns dias.

Tudo de bom sempre.



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