Ser estrangeiro na Coréia do Sul

por: Lucia Malla Ásia, Comportamento, Coréia do Sul, Política

Hoje é feriado na Coréia do Sul, oficialmente o dia da Libertação. Que nada mais é que a independência do país de seu dominador, o Japão, ocorrida há 61 anos. Interessante o uso da palavra “libertação” ao invés de “independência”: tenho a impressão que “libertação” é algo mais forte, mais poderoso para o coreano, embora imagine que a independência seja a maneira política de expressar a libertação de um país antes subjugado a outro e que signifiquem no fundo a mesma coisa. Divagações linguísticas à parte, fato é que o espírito orgulhoso nacionalista coreano está em festa hoje, e é sobre ele que ultimamente o governo federal se debruça. Há muitos e sérios problemas em ser estrangeiro na patriótica Coréia do Sul.

E eu sou uma estrangeira em terras coreanas. Mas não posso falar muito pelo meu caso ímpar: sou brasileira (um país muito exótico aos coreanos, do qual eles têm pouco conhecimento e informação mínima em geral), cientista (uma carreira intelectual) e casada com um brasileiro – melhor dizer “casada com um não-coreano”. Essas características reforçam a peculiaridade do meu status de estrangeiro aqui, e percebo peculiaridades em quase todos os brasileiros que moram aqui, afinal não somos muitos (a embaixada tem registrado cerca de 300 brasileiros). Somos uma exceção, não a regra.

Classificação do estrangeiro na Coréia

Os demais estrangeiros que vivem em terras coreanas (a maioria) estão divididos a grosso modo em 4 classes:

  • os coreanos expatriados (também chamados “coreanos étnicos”, nascidos em outros países, com passaporte estrangeiro e que retornaram à Coréia para viver ou trabalhar);
  • os militares americanos;
  • os professores de inglês (englobando canadenses, neozelandeses, australianos e britânicos);
  • os trabalhadores braçais (em geral, da China ou de países do sudeste asiático, como Vietnã, Laos, Filipinas, Camboja, etc. que procuram melhores condições de vida imigrando para um país mais “rico”).

Nos dados oficiais, são cerca de 750,000 estrangeiros vivendo na Coréia (~1.5% da população coreana). Não sei exatamente como se dividem entre as 4 classes acima, sei apenas que 32,000 militares americanos estão na península, número já suficiente para gerar protestos frequentes em Seul e adjacências de coreanos com sentimento anti-americano, gerado pela situação política da península. Mas coreanos não nutrem apenas sentimento anti-americano.

Um dos inúmeros protestos próximos à embaixada americana em Seul.

A Coréia do Sul é considerada um dos países mais hostis ao estrangeiro do mundo. Embora eu não seja uma estrangeira “comum” porque não pertenço a nenhuma das 4 grandes classes acima, noto bastante a atitude de estranhamento perante os não-coreanos. As leis e regulamentações para o estrangeiro são confusas, o que atrapalha os negócios das multinacionais. Além disso, a dificuldade de comunicação do coreano é considerável. Mais: a diferença cultural entre eles e o mundo ocidental é abissal. Por fim, ainda existe um grande sentimento de “homogeneidade” que eles prezam muito dentro do país.

Parênteses

Os coreanos, quando o assunto é casamento, não gostam de misturar seu “sangue” com os de outras etnias. Entretanto, por alguma razão (preconceito, confucionismo ou ignorância mesmo) existe uma aversão grande em doar sangue, e os coreanos dependem de importar sangue para manter seus bancos, de diferentes países. Ironia da vida, quando o assunto é doença, o coreano literalmente mistura seu precioso sangue sem saber com o de outros povos. Um peso, duas medidas. Fim do parênteses.

O que é preciso para ser considerado coreano?

Para uma pessoa ser cidadã coreana, precisa ser filho de coreanos E nascer na Coréia. Se eu tivesse um filho aqui, por exemplo, ele não seria coreano. Afinal, não existe o chamado jus solis. Dessa forma, nenhum estrangeiro, por mais adaptado que esteja, nunca chega ao status de cidadão. Por isso, há casos bizarros como filhos de cidadãos coreanos apenas nascidos em outros países mas que vivem aqui há décadas e são, perante a lei, “estrangeiros”.

Ser estrangeiro na Coréia do Sul

Onde melhor vemos a homogeneidade coreana: no metrô de Seul. Acima, duas amigas minhas que são “coreanas étnicas”. Uma é canadense e a outra é americana. Ambas moravam na Coréia, são filhas de coreanos. Mas, apesar da descendência, não são coreanas perante a lei.

Esse rigor no que é “ser coreano”, essa homogeneidade da raça, gera uma união no país de proporções inacreditáveis, característica aliás que ajudou a Coréia a pular de país pobre e subdesenvolvido para rico e desenvolvido em poucas décadas. Hoje, a Coréia tem uma economia forte, empresas reconhecidas no mundo todo (Samsung, Hyundai, LG,…), mas ainda não tem tanto espaço na mesa de negociações das nações ricas. Porque, para ir além, para dar esse salto qualitativo nas relações internacionais, precisa de mais multiculturalismo. O multiculturalismo é o elemento singular que gera criatividade e maior adaptação a adversidades em qualquer sociedade. Quanto mais diversidade, mais probabilidade de evolução, uma lei biológica que se expande nesse caso às sociedades. É a homogeneidade que agora navega contra eles, e impede, sob o mesmo ponto de vista, que a economia coreana se destaque mais no âmbito internacional.

Novas regras

E com tantos estrangeiro na Coréia, o governo, que não é bobo, decidiu agir. E estão preparando uma série de regulamentações da imigração para a Coréia que vão trazer uma reviravolta na sociedade. Como, por exemplo, a definição do que é ser cidadão coreano. As novas regras ainda estão em caráter embrionário, sugeridas a diferentes esferas do poder. Não surpreendentemente, o feriado da Libertação desse ano tem como principal temática a conscientização dessa necessidade de mais integração entre estrangeiros e coreanos. Só de ler jornais e entreouvir dos coreanos em suas conversas, já posso imaginar as consequências radicais que tais mudanças trarão. Para melhor ou para pior, não sei. Só o tempo dirá.

Tudo de bom sempre.



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