Resenha – A Crack in Creation

por: Lucia Malla Biomédicas, Ciência, Evolução, Livros, Molléculas da vida

Vivemos tempos interessantes, para dizer o mínimo. Desde muito antes da pandemia de coronavírus, entenda-se. Isto porque a tecnologia de edição gênica descoberta por Jennifer Doudna, pesquisadora da Universidade da Califórnia – Berkeley já havia deslanchado tempos interessantes na pesquisa molecular biomédica. E é esta descoberta que ela destrincha em seu livro “A crack in creation – Gene editing and the unthinkable power to control evolution”, escrito em parceria com Samuel Sternberg. (A tradução do título seria “Uma fissura na evolução – Edição gênica e o poder impensável de controlar a evolução”.)

Sobre Jennifer Doudna

Resenha - A crack in creation - Jennifer Doudna e Samuel Sternberg - edição gênica

Não é a primeira vez que o nome de Jennifer Doudna aparece aqui no blog. Afinal, em 2018 assisti a uma palestra dela aqui na Universidade do Havaí. Na época, escrevi sobre ela:

(…) Jennifer Doudna, a cientista que descobriu o Crispr-Cas9. Este é o sistema de edição genética que já está revolucionando a biologia e nossas apostas pro futuro. Por esta descoberta, Doudna é séria candidata a um prêmio Nobel. Doudna trouxe, além da biologia de sua descoberta e das possibilidades médicas e agrícolas, as questões éticas e morais da edição gênica. Não se acanhou em discutir o efeito frankenstein de sua tecnologia. Uma grande wizard/ maga. A palestra tinha um tom otimista arrebatador. Parecia paródia daquela frase besta de facebook: se organizar direitinho, todo mundo se salva.”

O post em que o trecho acima aparece era uma resenha sobre o livro “The Wizard and the Prophet”, que contrapunha dois “tipos” de visão da ciência e de mundo. E na época classifiquei Doudna como uma perfeita “wizard“, alguém que se apega a um desenvolvimento tecnológico para “salvar” a humanidade (ou salvar o que quer que seja).

Maga ou profeta?

Entretanto, é fenomenal perceber o quanto a dicotomia “mago” vs. “profeta” aqui se revela em tons de cinza.

A crack in creation” é dividido em duas partes.

Jennifer Doudna - Palestra no Havaí sobre edição genética
Jennifer Doudna em palestra no Havaí.

Na primeira parte, “The Tool”, Doudna explora como chegou à descoberta do Crispr-Cas9, o sistema revolucionário de edição gênica que ela esmiuçou em bactéria. O Crispr-Cas9 funciona como um mecanismo de “resposta imune” das bactérias às infecções virais, e só por isso, já revela um lado fascinante das interações microbiológicas. (Há mais detalhes incríveis nesta descoberta. Sugiro imensamente ler o livro pra se admirar com todos.) Mas, a conclusão desta primeira parte do livro é clara: a descoberta de Doudna a coloca como uma das grandes “magas” da atualidade.

Entretanto, na segunda parte entitulada “The Task“, o livro entra profundamente na discussão ética sobre a tecnologia de edição gênica. E foi esta parte que achei mais fascinante. Porque aponta para uma faceta “profeta” de Doudna. Ao revelar este lado “profeta”, o livro também questiona a ambiguidade destas visões científicas. Afinal, todo cientista tem um pouco de cada uma destas visões dentro de si.

Não que as considerações sobre os benefícios e perigos do Crispr já não estivessem alardeados pela própria pesquisadora. Mas ler de maneira tão brilhantemente descrita e pensada, pela pessoa que fez a descoberta, é um bálsamo de ética na ciência.

Na segunda parte de “A crack in creation“, ao comentar sobre as implicações profundas do Crispr, Doudna e Sternberg abrem a caixa de Pandora. Afinal, esta é a primeira vez na história da evolução da vida (ou seja, nos bilhões de anos em que há vida neste planeta) em que poderemos modificar genomas para se adaptarem a algo que queremos. Ou seja, intencionalmente tornar possível o direcionamento da evolução.

Por que a edição gênica é uma revolução na evolução

Um dos mecanismos clássicos da evolução biológica é a mutação genética. A mudança randômica de uma das letrinhas do DNA, que de acordo com o valor adaptativo que traz ao organismo, é mantida ou extinta da população ao longo do tempo. É assim que estamos hoje todos aí, humanos, bactérias, plantas… Enfim, todo o universo biológico, sob influência das leis evolutivas por bilhões de anos.

Mas a mutação genética ocorre de maneira aleatória. E com o aparecimento do homem (e sua evolução), ser racional, aos poucos fomos aprendendo a “manipular” um pouco a evolução biológica, ao nosso favor. Só que esta manipulação, até então, foi feita de uma maneira um tanto “rude”, com técnicas de melhoramento genético, por exemplo, inserção de genes específicos em organismos (como para resistência a doenças em plantas etc.), e que levavam um tempo muito maior para se fixar. Além de serem muito mais custosas.

Agora, com a teconologia do Crispr-Cas9, a possibilidade de edição gênica é infinitamente mais eficiente, mais barata e com probabilidade de sucesso exponencialmente maior. Porque a mudança pode ser feita de maneira puntual, sem desestabilizar outras áreas do genoma nem afetar dramaticamente as demais características do organismo. E, principalmente, pode ser feita diretamente nas células germinativas, ou seja, nos gametas responsáveis pela hereditariedade da mutação biológica. Com isto, de maneira limpa e clara, domamos a evolução.

A crack in creation – mesmo

A técnica de edição gênica que Doudna revelou ao mundo nos transforma, de repente, em uma espécie de potenciais criadores. Se antes a evolução estava “subjugada” ao randomismo da mutação, agora pode ser executada de maneira mais específica e intencional. Foi revelada uma fissura na criação – mesmo.

Este poder incalculável que o Crispr trouxe para nós, humanos, é de uma ambiguidade assustadora. Se por um lado pode nos ajudar a resolver problemas gigantescos, como mudanças climáticas e segurança alimentar, por outro pode nos enveredar facilmente para um caminho frankensteiniano, do pior determinismo biológico possível. Pode gerar mais divisões e desigualdade. Um mundo de Gattaca que a gente precisa regulamentar com cuidado redobrado.

E é a isso que Jennifer Doudna vem se dedicando ultimamente. “A crack in creation” discute os principais conflitos éticos que a edição gênica pode trazer. Discute as regulamentações possíveis éticas a nível mundial para evitarmos um pesadelo no futuro (muito) próximo. Se lembrarmos que já houve “bebês crispr” na China, esta discussão ética na sociedade se torna ainda mais urgente. (O livro foi publicado antes do crispr baby, portanto os autores apenas mencionam esta possibilidade como “perigosa” – mal sabiam…)

Futurologia atual

Jennifer Doudna e Samuel Sternberg nos ajudam a digerir cada faceta desta revolução na evolução biológica. Com uma escrita clara e pungente, otimista até, terminei a leitura de “A crack in creation” pensativa dos inúmeros desafios éticos, sociológicos, políticos e ecológicos que a edição gênica intencional traz, e seu futuro.

Nas otimistas palavras dos autores:

“The power to control our species’ genetic future is awesome and terrifying. Deciding how to handle it may be the biggest challenge we have ever faced. I hope – I believe – that we are up to the task.”

“O poder para controlar o futuro genético da nossa espécie é incrível e assustador. Decidir como manipulá-lo é talvez o maior desafio que encaramos. Espero – acredito – que nós estamos preparados para esta tarefa.”

Recomendo imensamente a leitura como um exercício de futurologia dos mais atuais que existem.

Tudo de bom sempre.

P.S.

  • Uma trivialidade: Jennifer Doudna cresceu na Big Island do Havaí. Seu livro salpica em diversos momentos como viver neste estado de aloha influenciou sua carreira. Muito bonitinho.
  • Trivialidade mais importante ainda: Blake Wiedenheft, pos-doc do Laboratório de Doudna que contribuiu com uma análise bioquímica crucial à descoberta do Crispr-Cas9, estudava antes vírus das nascentes vulcânicas do Kamchatcka. Mais um motivo pelo qual amei o livro, portanto… 😀 #KamchatkaDream


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