por:
Lucia Malla
Animais, Brasil, Comes & bebes, Comportamento, Ecologia & meio ambiente, Faça a sua parte, Oceanos
Publicado
04/04/2007
Cresci celebrando a Sexta-feira da Paixão com minha família. Embora eu morasse no Espírito Santo, não comia bacalhau nem a famosa torta capixaba – iguaria que, por sinal, não sou muito fã devido ao excesso de mariscos que minha mãe sempre comentava serem de “procedência duvidosa”. Como tenho ascendência nordestina por um lado, fazíamos então na sexta-feira um verdadeiro banquete baiano: vatapá, caruru, arroz de côco e feijão de côco. Era mais sagrado que qualquer crença religiosa: chegava a sexta-feira, e íamos todos para a casa do meu tio ver a tia Alice preparar o melhor vatapá do mundo. (Sem exageros, o dela é realmente o melhor que já comi na vida.)
Para mim, a contradição máxima da Semana Santa residia exatamente aí. Como é que em um dia quando você supostamente precisa jejuar (é a tradição, não é?), nós comíamos o triplo do normal? Apenas esquecíamos da carne, mas de resto, era uma fartura só. Eu realmente não entendia. E cresci sem entender, e até hoje acho extremamente irônica essa contradição.
Eis que depois de quase 10 anos afastada do país – e obviamente descartando o feriado da Semana Santa do calendário – esse ano estou coincidentemente no Brasil nessa época para relembrar as tradições que rondam esse dia.
Sinceramente, fiquei assustada. Não com as prateleiras de ovos de chocolate, que agora têm opções mil, mas com as quantidades astronômicas de bacalhau que são vendidas nessa época nos mercados. O preço reflete bem a raridade desse peixe, mas as pessoas não estão nem aí – a maioria nem sabe que esta pode ser a última geração a comer esse peixe. Inacreditável.
O bacalhau da Noruega, também conhecido como bacalhau-do-atlântico, representa 50% do bacalhau à venda no mercado mundial hoje. É da espécie Gadus morhua, e sua reprodução é bastante demorada, além de ineficiente: a fêmea chega a pôr 10 milhões de ovos para apenas um se salvar. Para se alimentar, ele precisa de águas com uma temperatura extremamente restrita – uma diferença de um grau pode ser suficiente para ele não migrar e perecer. Por essas e outras, é muito problemático criar o bacalhau em cativeiro, pois ele precisa de muita área para sobreviver, já que é um peixe tipicamente migratório, e de temperatura mais que adequada. Há tentativas, mas elas não são bem-sucedidas.
O bacalhau sempre foi pescado por todo Atlântico Norte há milênios. Quando era pescado de modo artesanal, e o foi por mais de 1000 anos, a população de bacalhau conseguia se manter em níveis estáveis no mar. Mas o advento da indústria pesqueira de grandes navios e redes de arrasto colossais levou a produção à uma queda vertiginosa, e em 1992, a produção total de bacalhau chegou a um quinto da produção de 1969 (dados desse excelente artigo).
Hoje, o bacalhau já praticamente desapareceu da costa do Canadá, e mal sobrevive na costa escandinava. Os vilarejos noruegueses que dependem do bacalhau para manutenção da economia entraram em estado de alerta: era necessário tomar providências para que o animal não se extinguisse por completo. Essas providências foram tomadas: estabeleceram-se cotas de pesca. Mas não foi suficiente, pois as grandes indústrias compravam as cotas dos pequenos pescadores, e continuavam com a dizimação do bicho a níveis assustadores.
Atualmente, o bacalhau consta na lista vermelha de animais ameaçados de extinção como “vulnerável”, e sua população chegou aos níveis quantitativos mais baixos da história – nunca houve tão pouco bacalhau no mar. Seu preço no mercado reflete a fragilidade da sua população e sua insustentabilidade: está ficando cada vez mais difícil encontrá-lo. Se tudo continuar como está, se não pararmos de pescá-lo industrialmente, o bacalhau estará fadado à extinção no ambiente natural. E se o aquecimento dos mares também continuar no ritmo que está, o bacalhau poderá simplesmente ser extinto de vez, já que o aumento das temperaturas do Atlântico Norte levaria sua população ao colapso. Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come.
Aí eu volto ao mercado aqui perto de casa. Pilhas e mais pilhas de bacalhau sendo vendidas. O preço alto parece não intimidar o consumidor perante a necessidade de se manter a tradição – triste constatar nesse caso que parecemos a China abatendo tubarões a qualquer custo. A instituição igreja faria muito mais pela saúde e bem-estar do planeta se, na Semana Santa, incentivasse seus fiéis a literalmente jejuarem (e saírem dessa contradição estranha). Ou educasse seus seguidores a evitarem a compra de bacalhau. Será que se o consumidor soubesse que está contribuindo diretamente para o fim de uma espécie importante do topo da cadeia alimentar do Atlântico, persistiria nessa tradição que já não se sustenta?
E volto também às Semanas Santas da minha infância. Sem saber, em plena década de 80, antes do verde ser notícia, já fazíamos uma sexta-feira um pouco mais ecoconsciente que a atual, com o melhor vatapá do mundo. Viva a minha querida tia Alice.
Tudo de bom sempre.
Para viajar mais na maionese…
– Mais desanimador que ver a venda alucinada de bacalhau nessa época do ano, é constatar qual foi a alternativa “mais barata” encontrada aqui no Brasil: cação seco. Cação ou tubarão, um animal cuja pesca no Brasil é advinda apenas de “bycatch” (haja pesca acidental, viu… Só mesmo os órgãos fiscalizadores e ingênuos acreditam nessa desculpa esfarrapada da indústria pesqueira.) Eu vi uma pilha enorme de cação seco à venda no mesmo mercado que vi hordas de bacalhau. Sinceramente, a emenda, nesse caso, é tão ruim quanto o soneto.
– Já ouvi inúmeras vezes as pessoas argumentarem ao comprar bacalhau (ou qualquer outro produto que esteja ambientalmente ameaçado) que “o bicho já está morto mesmo, então é melhor comprar do que deixar estragar”. É exatamente essa mentalidade que fomenta o mercado, e mantém as indústrias pescando incessantemente. Em minha opinião, o contrário seria mais sensato: se você simplesmente parar de comprar, mesmo com a oferta alta, o mercado encalha com o produto. Da próxima vez que for comprar do distribuidor, o dono do mercado vai diminuir sua cota de compra, pois não quer ter um prejuízo com aquele produto. E o distribuidor, por sua vez, comprará menos da indústria, é a lei básica do mercado. Essa bola de neve reversa de diminuição do consumo seria, para mim, uma das melhores formas de se evitar a extinção completa das espécies animais ameaçadas pelo desenfreado e exagerado consumo humano.
– Leitura complementar, a quem interessar: em novembro do ano passado eu escrevi a minha opinião sobre a indústria pesqueira, depois de uma visita a uma colônia de pescadores.