Rastelando o mar

“But predicting a global fisheries collapse by 2048 assumes we do nothing to fix this, and shame on us if that were to be the case.” (Dr. Worm, autor do artigo da Science que proclama o fim da atividade pesqueira em 2048.)

Essa foi sem dúvida a notícia ambiental do mês para a maioria das pessoas – e principalmente para a mídia. O mar não terá mais peixes em 2048.

Parece até uma daquelas frases catastróficas de ecoxiitas tão odiados por muitos. Mas infelizmente não é. É a pura realidade. Só que agora demonstrada por cálculos teóricos baseados em dados fundamentados e sólidos do que vem acontecendo com os oceanos do mundo. Demonstrada pela ciência, em outras palavras. Virtualmente, não teremos mais o que pescar em 50 anos.

Um mundo sem peixe

Pesca artesanal - Rastelando o mar

Coincidentemente, essa semana estive conversando com alguns pescadores locais de um vilarejo próximo. Estes pescadores afirmaram categoricamente que há 10 anos se pescava muito mais que hoje.  Um deles emendou com a triste história de alguns companheiros que hoje pescam quilos e quilos de filhotes para pegar duas caixinhas de camarão e vender. Jogam os filhotes todos no lixo pelo pequeno lucro do camarão.

“Rastelam o mar”, foi a expressão sábia usada pelo humilde pescador.

E foi esse pescador quem me contou sobre a pesquisa da Science da forma mais pragmática. Achei muito interessante o fato de um trabalho científico de categoria ter impactado todos os segmentos da mídia, desde a mais globalizada até a mais local possível; o quanto a notícia assustou e chacoalhou as pessoas sem distinção alguma de cor, profissão ou residência. Saber que nossos filhos, netos e bisnetos não terão a oportunidade de comer ostras preocupou muito a todos, até aos que não acreditam fazer parte de um ecossistema global.

Preciso dizer que a conclusão de que em breve não teremos mais peixes na mesa não foi uma surpresa para mim em absolutamente nada. Talvez apenas a certeza da data, que mesmo assim ainda pode ter uma pequena margem de diferença (o desvio-padrão da estatística). Aliás, o autor mesmo reflete sobre isso. Mas acho que para ninguém que acompanha de perto o que vem sendo feito com os mares do planeta foi surpresa. Vide o depoimento do pescador que falei acima.

O efeito bola de neve

Mas é necessário termos equilíbrio, e analisarmos a situação com a cautela científica que lhe compete. A data que o artigo nos fornece, 2048, é uma previsão teórica. Leva em consideração principalmente que nada faremos. É a data quando as espécies comerciais mais pescadas acabarão: salmão, atum, bacalhau e similares.

(Mallísticamente não posso deixar de relembrar aqui que pesca intencional de tubarão, um dos peixes “grandes”, é ilegal em boa parte do mundo, incluindo o Brasil. Mas os pescadores usam de um buraco da lei para trazerem para suas barraquinhas muitos cações que virarão moqueca ou sopa pelos restaurantes da cidade.)

Entretanto, como as espécies mais pescadas e consumidas são em geral as que estão no topo da cadeia alimentar, as responsáveis pela manutenção do equilíbrio saudável do ecossistema, o mesmo pode se desmantelar por completo uma vez que essas espécies estejam extintas.

Para a saúde do planeta, ficarmos sem peixes-papagaio pode efetivamente acarretar ficarmos sem os recifes de corais ou sem as florestas de kelp. E é portanto mais ou menos isso que o cientista quis indicar e discutir com os dados apresentados na Science. Condenou-se a pesca comercial independente dos benefícios econômicos que ela traga. O fim dela estaria certamente próximo. Além disso, deixou o alerta claro de que precisamos começar a pensar numa nova atividade comercial para esse monte de gente que ficará desempregada em breve…

Pescar é parte da histórida da humanidade. Até quando?

Pescador tradicional - Rastelando o marPescar é talvez a atividade econômica mais primitiva que o Homo sapiens sapiens possui ainda. É uma atividade de caça, tal qual o leão que vai atrás do cervídeo. Era praticada até pouco tempo sem preocupação alguma de reposição de estoques, da maneira mais neandertalesca possível. Com um detalhe, entretanto. Porque não pertencemos ao ecossistema marinho intrinsecamente. Somos, afinal, apenas visitantes do planeta salgado. E tivemos portanto que desenvolver tecnologias para usufruir dele.

O advento dessas tecnologias diversas e a necessidade de alimentarmos um número maior de pessoas no planeta geraram com o passar do tempo a situação calamitosa em que nos encontramos perante o mar e seus habitantes naturais hoje. E já que não ligamos nosso desconfiômetro antes para prevenir o fim do sushi, chegou a hora de tentarmos consertar os problemas que geramos no planeta. Chegou a hora de nos assustarmos.

Pescador artesanal

Tamanho é documento: o pescador simples, com sua tecnologia limitada, causa obviamente muito menor impacto no ecossistema que as grandes frotas comerciais e suas redes quilométricas de arrasto. Cada um desses grupos requer um tipo de abordagem para conservação, é claro.

A escala da pesca industrial

Há algum tempo, o NYTimes dedicou um tocante editorial escrito por um ex-pescador ao problema da pesca do atum e de outros peixes grandes. Discutia o quão “desecológico” era comer marlim ao invés de tilápia. Afinal, a tilápia é produzida em fazendas de criação, é vegetariana e não impacta tanto o ecossistema.

O editorial trouxe à tona uma série de questões sobre a indústria da pesca. Principalmente aquela realizada pelos grandes cargueiros (asiáticos, em sua maioria), que “rastelam o mar” por milhares de quilômetros, sem darem chance de sobrevivência a espécies nada comerciais. Afinal, vai tudo pro lixo. Exatamente como no caso do pequeno pescador de camarão. Mas com a diferença de que nos grandes navios de pesca esse “lixo” final são toneladas de peixes sem valor comercial desperdiçadas por conta de uma meia dúzia de espécies que realmente interessam.

E o pior: as redes de pesca comerciais desses cargueiros colaboram também para a extinção de espécies de profundezas. Isto ocorre porque estas redes são enormes e chegam a lugares que humanos não vão. Mas rastelam do mesmo jeito tanto na zona de profundidade como na zona superficial.

Certamente, o impacto do pescador pequeno é muito menor que o do cargueiro industrial. Aliás, especulo que se existisse apenas a pesca artesanal, beneficiando as comunidades ribeirinhas e não existisse comércio algum de peixes e frutos do mar, tenho sérias dúvidas de que tivéssemos chegado a esse ponto preocupante.

A demanda por peixe

Os mares foram – e ainda são! – por muitos (e por muito tempo) considerados fonte inesgotável de sustento. Talvez pelo fato de não vermos o que está sob a água. Ou talvez pela sensação de infinitude que o horizonte nos deixa. Ou talvez ainda pela grande circulação de água que acontece nele. Talvez ainda sejam estes os fatores que geram essa sensação falsa de que os recursos ali existentes são intermináveis. Mas talvez seja também um sentimento humano de eterna negação de que fizemos tão errado tudo desde o início.

Mas se pararmos para pensar a fundo, esses cargueiros comerciais só existem fazendo essa atividade porque há a pressão básica do mercado consumidor para o peixe. Mais que isso, é notoriamente sabido que alimentar-se de peixe faz muito bem à saúde. Humana, entenda-se. Então, o afluxo de pessoas querendo utilizar mais e mais o peixe na dieta é muito maior que a pressão para conservá-lo. Nessa roda-viva, percebe-se claramente quem é o lado perdedor.

É essa complexa mentalidade, essa balança entre benefício e malefício a longo prazo, que precisa ser melhor discutida. Principalmente, propagada para as pessoas.

Rastelando o mar - barracudas

Eis o processo comercial: o peixe livre no mar é pescado…

Rastelando o mar - peixe no porto

... e é levado congelado a um porto.

Rastelando o mar - peixe à venda no mercado

No porto, o peixe é revendido a mercadores menores, que os expõem no mercado, onde você compra.

Rastelando o mar - moqueca

… Que você compra e usa para fazer sua moqueca. Infelizmente, a forma inicial com que o peixe é pescado carrega junto outros peixes que por motivos vários não são usados no comércio (e que você não vê), terminando na lata de lixo.

O mar não está pra peixe

Precisamos deixar claro: estamos comendo, exaurindo e poluindo o mar. Há milênios, mas mais intensamente agora, de algumas décadas para cá. E ao poluirmos, fazendo do mar nossa lata de lixo universal, estamos contribuindo diretamente para a destruição de ecossistemas, e com eles vão-se muitas espécies únicas. Ou espécies novas, que já são descobertas pela ciência ameaçadas de extinção, ou seja, nem temos tempo suficiente para entendê-las e já estamos fadados a batalhar por sua preservação. Inúmeras hoje são as zonas mortas de oceano no planeta, muitas delas irreversíveis. O mar está chegando no limite do suportável de destruição. Será que assistiremos a sua transformação em deserto de braços cruzados? Assim como Dr. Worm, eu espero imensamente que não.

Tudo de bom sempre.

P.S.

  • Quero mais uma vez ressaltar o caso dos tubarões, que são trazidos ilegalmente nos barcos de pesca rotulados como “lixo” ou “bycatch”, mas são comercializados de forma voraz. Calcula-se oficialmente que 73 milhões de tubarões são mortos anualmente para a – nesse momento supérflua – manutenção da tradição chinesa, mas sabemos empiricamente que o mercado negro é muito maior que isso. Mesmo em lugares onde há garantia plena jurídica de não-comercialização do produto, como nos EUA, encontram-se as científicas de que há aporte de subprodutos de tubarão espalhados pelos mercados.
  • O dado de que 90% da Ásia, a região mais populosa do mundo, joga esgoto no mar, assusta o blogspectador? Então dê uma olhada no que o Greenpeace vem descobrindo boiando à deriva ou em áreas remotas do Pacífico – em tese lugares quase desabitados do planeta.
  • Quanto vale 1 milha quadrada de recife de coral protegido? Eis que finalmente saiu um estudo (em português, comentário aqui) que mostra que é economicamente melhor preservar que destruir um ecossistema. Mas isso, se até o humilde pescador com quem conversei já aprendeu, que dirá os demais intelectuais e intelectualóides do nosso mundo, não é mesmo?


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